Escreve-se muito sobre ‘secularização’. O termo se deriva do latim ‘saeculum’, que significa o mundo ou o tempo no sentido amplo (contrário de momento). Na teologia e na filosofia, ‘secularização’ significa que pessoas de fé religiosa procuram viver em honestidade com o mundo, não negando ou escamoteando sua ‘realidade real’ por trás de idealizações ou sublimações religiosas. Por isso, o pensamento secularizante no âmbito cristão já foi chamado de teologia das realidades terrestres. Atualmente distingue-se entre ‘secularidade’, que é a consciência do mundo em que se vive; ‘secularização’, o pensar a fé religiosa com os dois pés no chão; e ‘secularismo’, que seria a negação do transcendente.
O que complicou a situação foi que, nos anos de 1960, a teologia das realidades terrestres, quando se debruçou sobre os problemas socioeconômicos, apresentou-se como ‘enfoque materialista’ (Belo, Clévenot), o que não melhorou a predisposição do magistério eclesial e dos fiéis em aceitá-la. Na América Latina, a secularização ficou escondida por trás da ‘teologia da libertação’, aceita com entusiasmo pelo povo das comunidades e por notável porção da hierarquia, a tal ponto que, depois de uma primeira reprimenda da Congregação para a Doutrina da Fé – informada unilateralmente –, o papa João Paulo II houve por bem declarar que existe uma teologia da libertação fiel e necessária.
A secularização tem raízes na Ciência: a revolução copernicana mostrou que a terra não é o centro do universo e imagina o mundo físico como ilimitado e em ilimitada expansão. Há fatos que não combinam com a tradicional imagem de Deus; para Voltaire, por exemplo, o terremoto de Lisboa em 1755 foi uma razão para negar o ‘Deus justo’ da teodiceia tradicional. Há razões de ordem psicológica, como a descoberta da sublimação religiosa pela psicologia profunda (Freud etc.). Ou de ordem socioeconômica, como a suspeita de que a religião seja o “ópio do povo”, impedindo-o de reclamar a justiça socioeconômica (Marx). O conjunto destes fatores e de muitos outros (como a revolta de Nietzsche contra a inautenticidade existencial) produz um clima em que a visão religiosa do mundo, especialmente o quadro bíblico-cristão, se torna obsoleto. Será possível continuar cristão sem adotar o ‘quadro bíblico-cristão’, cheio de intervenções de um agente extramundano, chamado Deus, que, além de criar o mundo em seis dias, continuamente intervém nas leis da natureza e da sociedade?
Quem reflete sobre essas questões pode ficar perplexo ou até parar de refletir, para se refugiar quer numa religiosidade tradicionalista ou conservadora, quer na indiferença e no materialismo.
A secularização manifesta-se no campo político (separação de Igreja e Estado, como na Revolução francesa e na Constituição do Brasil), no sociocultural (a migração da manifestação religiosa para fora do espaço público) e, de modo radical, na antropologia cultural do homem moderno (que o filósofo Charles Taylor chama de ‘humanismo exclusivo’, restringindo sistematicamente nosso horizonte existencial à dimensão humana). Um crente pode aceitar, e até aplaudir, uma parcial retirada da religião do espaço público, por considerá-lo inadequado para abrigar o que a fé quer representar ou expressar. Já a exclusão de toda transcendência, como ocorre no ‘humanismo exclusivo’, é inadmissível para o crente, mas é um desafio a ser enfrentado com lucidez por quem pretende ter uma fé que dialogue com a cultura na qual vivemos.
E de que fé estamos falando? Será ‘crença’, ‘religião’, ‘cristianismo’? O termo ‘cristianismo’ (e muito mais ‘catolicismo’) restringe a reflexão quando se pretende falar para espíritas, budistas, islâmicos. Já ‘crença’ pode ter uma conotação de superstição. ‘Religião’ não cabe bem para budistas, taoístas etc. Além disso, o grande teólogo calvinista do século 20, Karl Barth, negava que a fé cristã seria uma ‘religião’, porque o homem não é salvo pelas instituições e ritos religiosos, mas pela graça de Deus recebida na obediência da fé. Talvez seja preferível usar os termos ‘fé’ (no sentido de confiança, adesão, entrega) e ‘crer’ (acreditar, dar crédito), para nomear a aceitação do ‘transcendente’.
A questão da secularização não diz respeito, diretamente, à Igreja, nem à frequência dominical, mas à visão que o homem de hoje tem do mundo e do transcendente. Esta não é só uma questão do Atlântico Norte; é uma questão global, embora devamos contemplá-la no horizonte latino-americano e brasileiro. Nosso povo, mantém uma verdadeira abertura ao transcendente ou está tão envolvido nos embalos da produção e do consumo que qualquer horizonte abrangente se fecha, ainda mais porque até a religião parece ter-se transformado em produto de consumo?
*Johan Konings nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina