Pesquisadores norte-americanos identificaram gene inativo que explica o porquê de acidentes vasculares serem muito mais comuns em humanos do que em outros animais.
Os pesquisadores ainda não têm certeza sobre quais pressões evolutivas levaram os ancestrais do Homo Sapiens a inativar o gene — Foto: Ohio State University Wexner Medical Center
Em algum momento entre dois milhões e três milhões de anos atrás, ancestrais do que viria a ser o Homo sapiens "perderam" um gene. Na verdade, as funções do gene CMAH foram completamente desativadas no organismo. Essa característica foi passada adiante, ao longo da cadeia da evolução, e esse ramo deu origem ao Homo sapiens - coisa de 200 mil anos atrás.
Evoluímos. Desenvolvemo-nos. Entretanto, esse CMAH desativado trouxe uma característica nada positiva à nossa espécie: a propensão a sofrer ataques cardíacos – ou, tecnicamente, enfarte agudo no miocárdio.
Esta é a principal conclusão de um estudo divulgado nesta semana por pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade da Califórnia em San Diego, nos Estados Unidos. O material foi publicado pelo periódico científico "Proceedings of the National Academy of Sciences" (PNAS).
Segundo os pesquisadores, isto explica por que os ataques cardíacos coronarianos são tão comuns em seres humanos, ao mesmo tempo em que "virtualmente inexistentes" em outros mamíferos, inclusive os nossos parentes chimpanzés. Há indícios de ataques do coração em baleias-cachalotes e golfinhos, mas são poucos.
Coração
Doenças cardiovasculares são a principal causa de mortes prematuras - ou seja, de pessoas com menos de 70 anos – no mundo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), elas causam 17,9 milhões de mortes por ano – 31% das mortes totais do mundo. E a expectativa é de aumentar para 23 milhões de casos por ano até 2030.
Destas, a maioria das mortes é causada por complicações da aterosclerose - grosso modo, formação de placas de gordura nas artérias que transportam o nosso sangue. "Isso resulta no estreitamento das artérias e na redução do fluxo sanguíneo, até níveis críticos, em órgãos vitais", pontua um dos autores do estudo, o médico Ajit Varki, professor e pesquisador da Universidade da Califórnia.E aí entra a descoberta principal. "A perda do gene CMAH impulsiona o desenvolvimento de uma das principais complicações responsáveis pela causa número 1 de morte no mundo", ressalta ele, referindo-se à aterosclerose.
Segundo os pesquisadores, a predisposição causada pelo gene inativo é para todos – mas tem um potencial agravado, ou um risco adicional, para os seres humanos que consomem carne vermelha.
O estudo lembra que embora haja uma série de comportamentos que aumentem o risco do ser humano de ser vítima de um ataque cardíaco – colesterol alto, sedentarismo, idade avançada, hipertensão, obesidade e tabagismo, por exemplo – em 15% dos casos de doença cardiovascular, o paciente não tem nenhum desses fatores. Seriam casos apenas de predisposição genética.
Em estudo anterior do qual Ajit Varki foi um dos autores, publicado há dez anos, cientistas já haviam observado que a aterosclerose praticamente inexiste em outros animais. Na ocasião, foram observados mamíferos em cativeiro, como os chimpanzés. A ideia era analisar se fatores de risco comuns aos seres humanos, como altos índices de gordura no sangue, hipertensão e pouca atividade física, poderiam causar infartos nesses parentes do ser humano.
Nada do tipo foi registrado. Os raros ataques cardíacos de chimpanzés são causados por uma até agora inexplicável cicatriz no músculo cardíaco - sem nenhuma relação com aterosclerose, portanto.
Conforme enfatizam os pesquisadores, em cenário natural, nenhum outro animal desenvolve aterosclerose. Eles só padecem do problema cardiovascular quando geneticamente modificados para gerar a presença de fatores de risco humanos ou em alguns casos em que são, para estudos, alimentados com dietas com quantidades estratosféricas e não-naturais de colesterol.
O biólogo brasileiro Frederico Alisson da Silva, professor e pesquisador do Departamento de Imunologia do Instituto de Microbiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), trabalhou no laboratório de Varki, na Universidade da Califórnia.
Em conversa com a BBC News Brasil nesta segunda (22), ele lembrou o estudo anterior como sendo o ponto de partida para a descoberta anunciada agora.
"A observação [de dez anos atrás] levou as pesquisas a investigar e confirmar que a perda específica, por parte dos seres humanos, do CMAH, ajuda a explicar essa discrepância evidente", disse ele, sobre os ataques cardíacos ocorrerem em Homo sapiens, mas não em outros animais.
Ratos com gene desativado
No estudo publicado nesta segunda, o médico Varki e sua equipe utilizaram ratos geneticamente modificados.
Os roedores foram manipulados para, assim como os humanos, terem o gene CMAH desativado. Um grupo de controle, com as mesmas condições de vida, foi mantido com o gene funcionando normalmente. Os ratos alterados geneticamente, mesmo alimentados da mesma forma e com a mesma rotina de seus semelhantes, tiveram pelo menos duas vezes mais acúmulo de gordura no sangue.
O CMAH produz uma molécula chamada Neu5Gc – um tipo de ácido siálico. Conforme constataram os cientistas, a falta dessa substância favorece o desenvolvimento da aterosclerose. Como o ser humano não consegue sintetizar o Neu5Gc, pela falta do gene correspondente, acabamos suscetíveis a ataques cardíacos.
Ainda não há uma certeza de como os ancestrais hominídeos perderam essa função. Uma hipótese aventada pelos cientistas é que algum parasita atacou nossos antepassados, atraído pelo Neu5Gc. Por seleção natural, cada vez mais os sobreviventes eram os que não sintetizavam a substância. E isso acabou, gradualmente, erradicando a propriedade de todos os hominídeos descendentes desse ancestral.
"Existem alguns cenários que podem explicar por que a inativação do gene CMAH se fixou no gênero Homo", comenta o médico. "Um cenário possível é que um patógeno mortal e eficiente preferiu sequestrar o Neu5Gc produzido pelo gene CMAH e apresentado na superfície da célula, para invadir nossas células. Isso poderia ter criado uma pandemia desastrosa, resultando em uma seleção negativa de nossos ancestrais expressando um gene CMAH funcional."
Outra explicação, segundo ele, seria a fertilidade seletiva "por meio da imunidade feminina contra o Neu5Gc paterno". "Nesse caso, as fêmeas deficientes em CMAH só teriam sido capazes de produzir descendentes com machos deficientes em CMAH, conduzindo a uma seleção positiva de inativação de CMAH."
Varki não descarta, contudo, a aleatoriedade do fenômeno. "Não podemos excluir um cenário em que a inativação do CMAH tenha ocorrido aleatoriamente e se fixado em um pequeno grupo de indivíduos que, eventualmente, deram origem aos humanos modernos", completa.
Também não se sabe exatamente qual ancestral hominídeo nos legou esse gene desativado. "Atualmente é impossível pontuar com precisão, uma vez que não sabemos o momento exato em que o gene foi desativado", argumenta Varki.
Os cientistas também apontam que a falta do Neu5Gc também aumenta risco de outros problemas de saúde, como a diabetes e a chance de sofrer um acidente vascular cerebral. "O aumento do risco parece ser impulsionado por múltiplos fatores", aponta Varki. "Mas isso pode ajudar a explicar por que até seres humanos vegetarianos, sem quaisquer outros fatores óbvios de risco cardiovascular, ainda são muito propensos a ataques cardíacos e derrames, enquanto outros parentes evolucionários não são", diz.