No final da tarde de hoje, Luiz Inácio Lula da Silva descerá a rampa do Palácio do Planalto, deixando a condição de mandatário-mor do País. Nesse momento, as cortinas descerão sobre um palco aberto em 1.º de janeiro de 2003, onde peças sempre bem aplaudidas exibiram a performance do mais prestigiado líder do Brasil contemporâneo, um dos raros a combinar dois celebrados conceitos de Maquiavel: a virtú e a fortuna. Ao maximizar seu prestígio junto às massas, reforçado por um perfil carismático, Lula administrou, de maneira exemplar, as circunstâncias de um tempo pleno de aspirações, atingindo, por consequência, o grau de maior provedor das necessidades do povo que governou. A sorte que bafejou o governante, soprada por ventos que revigoraram o ambiente econômico, foi usada por ele de maneira eficaz para estreitar as distâncias entre as classes sociais. Ajudou-o nessa tarefa a alma intuitiva de um brasileiro que saiu do andar mais baixo do edifício nacional. Alma plasmada pelas carências das populações mais sofridas. Esse tempero fez a diferença de estilo.
Afinal, o que foi o ciclo Lula? Foi, sobretudo, a era de intensa dinâmica social, que propiciou a inserção de apreciável contingente ao mercado de consumo. A pirâmide das classes teve seu meio alargado com afunilamento da base, ou seja, tornou-se menos triangular e mais retangular. Esse constitui o maior feito do governo comandado pelo ex-metalúrgico. Além de 30 milhões de brasileiros que ascenderam à classe média (baixa), outro núcleo se movimentou da margem extrema da base para um degrau acima, ou, nos termos da estratificação social, subiram da classe E para a D. Abre-se, aqui, um parêntesis. A ascensão social foi, é e sempre será meta prioritária das esquerdas. Por consequência, o PT procurou validar o seu passaporte esquerdista - até para estabelecer um diferencial sobre outros partidos - a partir da política de inserção social da era Lula. Mas é arrematado exagero dizer que uma guinada esquerdizante passou por aqui.
Sob essa leitura se esvanece a tese de que o grid de largada do Brasil na pista internacional é coisa exclusiva do governo Lula. Na verdade, a montagem da corrida se deu lá atrás, quando o ciclo Itamar/FHC abria os tempos estáveis do Plano Real. Por isso, parcela ponderável da expressão cívico/ufanista do período que se encerra faz parte do enredo de autoglorificação. O verbo solto que se emprega para exalar os feitos contemporâneos chega a lembrar o ciclo militar, quando a harmonia social, flagrada nas imagens de crianças brincando em jardins, se fundia com o verde-amarelo da bandeira, enquanto um hino cívico enaltecia o Brasil Potência. Nem por isso se pode diminuir a inequívoca virtú do presidente Lula, exercida nos palanques populares e nos salões nobres e irradiando influência. Exemplo é a imagem externa do Brasil. Ficou mais forte, apesar de rompantes da diplomacia, ao cortejar países de inequívoca tradição repressiva, como o Irã. Não se imagina evento de magnitude no plano internacional sem a voz do Brasil.
Os êxitos do lulismo, como se aduz, se devem sobretudo ao gerenciamento da economia. Ali se desenvolveu uma política conservadora. Controle de câmbio e juros elevados. A habilidade do dirigente em aproximar os frutos econômicos do estômago das massas - entendendo-se que as camadas atendidas incluíram fortes estratos das classes médias - ganhou realce nos palanques da redundância, que deram ampliação aos fatos e versões. Já na seara política, a situação não avançou. Pode-se até concluir que Luiz Inácio usou com mais astúcia do que seus antecessores os meios de cooptação para formar sólida base de apoio ao governo. Passou perto dele o trem do mensalão, mesmo que defenda ter sido o fenômeno uma invenção da mídia. Ora, a Justiça provou que o processo ocorreu. A mesma sensação de que a coisa não andou ocorre nos campos da saúde, segurança, Previdência, tributos e trabalho. Viu-se, em compensação, um Judiciário mais solto e aberto, descendo de um altar inacessível para ficar mais próximo da sociedade. E tomou às mãos pautas da mais alta relevância. Cassou mandatos. E contou com o esforço de um batalhão de defensores da sociedade, arregimentados no Ministério Público. A corrupção não acabou, porém ficou mais exposta a controles.
Por último, a dúvida: com a descida da rampa, o ciclo Lula se encerra? Sem dúvida. A explicação para a resposta leva em consideração o fato de que os ciclos governamentais não se repetem, mesmo que antigos dirigentes sejam reconduzidos ao posto de comando. Relembramos a velha lição do filósofo: “Um rio nunca corre duas vezes pelo mesmo lugar.” Lula, como ele próprio já piscou, pode até voltar em 2014. Mas o ambiente deverá ser diferente. Outros movimentos aparecerão no cenário. A dinâmica social continuará em evolução, enquanto núcleos organizados energizarão a sociedade. É possível prever a migração do voto do bolso para o voto da cabeça. Bom sinal. O rio correrá por outros lugares.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação. Twitter: GaudTorquato