Artigo de Dr. André Fusco
O trabalho é uma das temáticas mais presentes no cotidiano e considero necessário admitir as injustiças das suas regras para podermos nos emancipar no trabalho. Assim sendo, é necessário emancipar o Édipo para criar as identificações e seguir em busca de outros elementos.
É preciso entender os mecanismos de controle de Recursos Humanos para superar nosso desamparo e construirmos uma relação emancipatória com o trabalho. Em seu livro Trabalho Vivo: Trabalho e Emancipação, o médico ocupacional e psicanalista, Christophe Dejours, chama de “emancipação no trabalho” a construção da “Identidade Profissional”. Assim pelas regras passaríamos da opressão para o reconhecimento no trabalho, aquele reconhecimento que permite perceber o valor gerado e a beleza de como este valor foi criado.
O pensamento edificante é que eu trabalho, porque construo algo de valor para alguém e assim gero valor para a sociedade, portanto, sou útil. Faço isso de uma forma bela, única e cada vez melhor, numa constante construção do belo profissional que idealizo. Dejours expõe em sua obra que eu expando meu corpo erótico enfrentando as dificuldades que o ato de trabalhar me impõe. É adquirindo habilidades que amplio meu entendimento do ofício e me torno útil e único.
A dedução é que esta emancipação ou construção da identidade profissional se concretiza no reconhecimento. O outro me mostra sua admiração e espelha minha utilidade e a estética do meu trabalho, e assim a minha utilidade e beleza. O outro que reconhece pode ser meu colega de ofício, meu gestor, o sistema de avaliação e as formas de incentivo das empresas.
Mas a solução para as atuais regras de trabalho estão apenas começando. Em minha prática, em algumas empresas já construí sistemas de avaliação de reconhecimento ao invés de sistemas punitivos. Já criei, inclusive, metas coletivas ao invés de individuais.
Estas regras de gestão têm sofrido mudanças ao longo dos anos. Um exemplo de transformação recente foi a provocada pela pandemia de coronavírus e pela evolução tecnológica. É o trabalho remoto. Com ele desobrigou-se comparecer no local de trabalho tradicional e muitas profissões passaram a ser exercidas à distância. Algumas regras, porém, insistem e persistem ao longo do tempo e dificilmente são questionadas. Um bom exemplo é a gestão de performance de funcionários através de rankings.
As consequências de estar com a performance pior do que seus pares, em um determinado contexto, acarreta punições que passam por dissabores como redução na remuneração (remuneração variável), exclusão de processos de carreira e promoção, e até em desligamento.
Já os melhores recebem remuneração melhor, promoção e um período de segurança até o início de novo ciclo de avaliação. É nitidamente um estímulo pela competição e pelo medo. Esta competição, esta vontade de ser melhor e de vencer nos faz ultrapassar limites, aumentar nossa dedicação pelo temor de ser pior que os demais. Provoca alta eficiência a curto prazo e assim parece ser uma boa forma de gestão.
Uma das consequências desta regra é a necessidade de criar critérios de comparação que podem ser, por exemplo, de quantidade de atendimentos de um teleoperador, o lucro líquido de um fundo de investimento administrado por um economista, um índice de satisfação de clientes de vendedores de uma loja, a quantidade de produtos manufaturados em uma linha de montagem, o número de faltas ao trabalho ou até a quantidade de horas trabalhadas por um vigilante.
Estes critérios desconsideram as características dos profissionais e suas peculiaridades como gênero, idade, expertise, moradia, etnia, situação socioeconômica, etc. No mundo do trabalho é comum um jovem recém-formado ser considerado de alta performance quando comparado a uma mulher que acaba de retornar de sua licença maternidade. Em algumas ocasiões os meses de licença contam como se a recente mãe não tivesse produzido nada. Em outras descontam-se os meses parados como se esta fosse a única diferença em sua performance entre os dois profissionais comparados.
Os critérios desconsideram também oscilações dentro do próprio contexto de trabalho, como por exemplo, o resultado das vendas de dois gerentes que cuidam de regiões diferentes. Um do Nordeste e outro do Sudeste, ou um do centro de uma capital e o outro da periferia. Os resultados financeiros das vendas são comparados e para esta sistemática funcionar um necessariamente tem que ser melhor que o outro.
Desta forma organizamos o trabalho estimulando a competição e o medo. Estas práticas geram sofrimento através da degradação dos relacionamentos, da insegurança, sensação de injustiça e outras consequências danosas.
Ao invés de realização profissional, ao invés de orgulho de ser o profissional que é, encontramos uma insatisfação e uma perda de sentido do trabalho.
A relação com o trabalho passa a ser de sofrimento sem sentido. “Sextou” se transforma num grito de libertação dos cinco dias de penúria. Um grito regado a cerveja e outras bebidas etílicas e, portanto, ansiolíticas. O trabalho estimulado pelo medo e pela competição nos afasta do valor a ser gerado, do papel positivo que o trabalho tem em nossas vidas quando produzimos algo relevante e de forma bela.
Além da relação deteriorada com o trabalho prejudicamos os relacionamentos. Ao invés de construir colaboração construímos rivais em um contexto individualista. Mas por que não mudamos essas regras de gestão de recursos humanos por uma lógica mais humana? Por que não questionamos a organização do trabalho?
Christophe Dejours explica no seu livro os mecanismos de defesa que fazem com que estas incoerências sejam sustentadas até por quem as vive diariamente. Ele chama o fenômeno de mecanismos coletivos de defesa. Na minha prática profissional, não como psicanalista clínico em consultório, mas como consultor de empresas para fazer programas de saúde mental, me deparo com um fenômeno recorrente: as regras que geram sofrimento raramente são responsabilizadas. O que observo é a personificação da injustiça e isso é desalentador.