Ela chegou ao nosso encontro animada naquela manhã. Diferente das outras vezes, seus olhos não estavam baixos, nem o rosto triste como quem carrega a dor calada de muitos anos. Desta vez, trazia um brilho curioso no olhar. Não era alegria. Era faísca. Era algo que queimava lá dentro. E foi logo dizendo: Vocês viram? A mulher daquele ator... bonzinho, símbolo da nova geração, casamento de capa de revista... botou a boca no trombone! Denunciou! Apareceu no jornal! Depois de 15 anos! Ela ria meio sem graça. Mas eu, sem conseguir me conter, perguntei: E você? Vai esperar completar 15 anos também para dar parte do seu? Para botar a boca no trombone? Ela ficou em silêncio por um segundo. Depois disse que já tinha ido à delegacia. Algumas vezes, na verdade. Mas que nada acontecia. “Não levam a gente a sério. A gente apanha... e ninguém faz nada.” E é aí que mora a tragédia social: quando nem as próprias mulheres acreditam que merecem ser levadas a sério. E vão aceitando. Um roxo. Uma humilhação. Uma ameaça. Um ciclo. Sempre existe uma desculpa, os filhos, a casa, a dependência financeira. A velha história que vai se repetindo como um disco riscado, tão velho que nem convence mais. E pior: só reforça o desrespeito dos que violentam. Mas há outras histórias. Como a de uma outra amiga. Mãe de três filhos. Fugiu debaixo de ameaça de morte. Deixou tudo. A casa, o carro, os móveis, os pertences, a vida anterior. Saiu com os filhos e a coragem, morou em casas de conhecidos, viveu da solidariedade por um tempo. Sustentou os três filhos sozinha, sem um tostão do pai. E sem precisar se curvar ou se perder. Anos depois, completou o doutorado. Os três filhos estão em universidades públicas. Nada disso foi fácil. Mas foi possível porque ela acreditou nela mesma. Porque ela se levou a sério. E é esse o ponto. Quando a mulher se leva a sério, o mundo começa a levar também. Quando ela entende que não precisa fingir ser feliz por trás de uma porta trancada ou um batom bem passado, ela começa a se reconstruir. Porque não há luxo, carro ou desculpa que pague o preço de uma vida em pedaços. Não se trata só de coragem. Trata-se de dignidade. De recomeço e respeito. As mulheres que dizem “basta” não são as que falham. São as que vencem. São as que mostram aos filhos que não se ama com medo, que não se vive com dor. Que a felicidade não deve machucar. É preciso romper. Romper o silêncio, proteger os filhos traumatizados com essa violência. Romper o ciclo. Romper com a ideia de que sofrer é prova de amor. Porque não é. A mulher que denuncia não é destruidora de lares. Ela é reconstruidora de si. Como porcelanas quebradas e coladas com coragem, ela ressurge, com mãos vazias ou apenas com o retrato do lar ou do homem que sonhou um dia. Mas ressurge inteira. Afinal, “botar a boca no trombone” também é um ato de amor próprio. E esse, nenhuma violência apaga.