A fogueira eleitoral está arrumada e, entre as primeiras fagulhas jogadas para acendê-la, uma das mais intensas é a que carrega a insinuação: se Dilma for eleita, será manobrada por Lula. Faíscas também correm no contorno da hipótese de que a candidata seria irremediavelmente embalada no celofane do PT, que faria barba, cabelo e bigode em sua eventual administração. A liturgia incendiária ganhou força nos últimos dias por causa da entrega ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) do programa do partido, contendo abordagens polêmicas e com a rubrica da ex-ministra, o que indicaria influência de grupos sobre os quais reina a suspeita de defenderem um ideário radical. A questão de fundo, a permear discussões e preocupações que se espraiam por certos núcleos, é: nos sistemas democráticos, mesmo em democracias mais jovens, como a brasileira, é viável imaginar a figura de um fantoche como mandatário-mor do país?
Fixemos o olhar sobre o presidente Luiz Inácio. O carisma que irradia seu perfil não foi suficiente para torná-lo mandachuva absoluto. Lula amoldou-se às circunstâncias. Amalgamou posições, flexibilizou visões, amaciou núcleos radicais do PT, atraiu bases partidárias, abriu fronteiras na frente política, fortalecendo condições para chegar ao final de mandato com forte respaldo. Mesmo com esse estofo, não conseguiu ganhar todas as batalhas. Algumas derrotas ele teve de engolir, a exemplo deste último episódio, o aumento de 7,7% para os aposentados. Se imprimiu ritmo e estilo, ancorado no carisma e alto prestígio junto às massas, dobrou-se às circunstâncias da política, sobretudo à índole fisiológica que retrata a identidade do conjunto partidário. Às características endógenas de nossa cultura soma-se a moldura exógena, onde se distinguem os atributos da internacionalidade, como a imbricação das fronteiras entre países, a integração de economias, a defesa das liberdades e dos direitos humanos e compromissos estreitos assumidos pelas nações.
No caso do Brasil, a condição de país emergente que saiu da crise antes de outros e com rico portfólio de riquezas naturais impulsionou sua ascensão ao ranking da credibilidade, dando-lhe assento em fóruns qualificados. Nessa posição, passou a ser ouvido com mais atenção, apesar de ter liderado episódios que causaram rebuliço como a questão nuclear envolvendo o Irã. O argumento central é o de que os governantes no Estado moderno não trabalham apenas com sua individualidade, mas procuram ser a extensão das circunstâncias que os cercam. Tem sido assim com Lula e será da mesma forma com José Serra ou Dilma Rousseff. O tucano, por exemplo, caso seja eleito, deverá temperar a forte personalidade com o molho que sairá do caldeirão do Congresso Nacional. Da mesma forma, seria inimaginável pensar na visão de um País ecologicamente sustentável a partir da visão exclusivista dos verdes de Marina Silva. No arremate da ideia, emerge a hipótese de que o mandatário nestes tempos de política horizontalizada, repartida entre siglas e grupos, não conseguirá eficácia caso decida adotar políticas unilaterais e polêmicas. Governantes fazem questão de personalizar o poder e criar marca própria. Mas tal esforço deve ser compatível com a Realpolitik.
Luiz Inácio poderá ser o mandachuva num eventual governo Dilma? Só se a ambição desmesurada invadir sua vontade. E se o fizer estará borrando o livro de sua história. O ex-metalúrgico intui que cada comandante de nação tem um ciclo de vida com etapas bem definidas, que abrigam o lançamento, o clímax até baterem no porto de desembarque. Convém a um jogador de futebol se retirar de campo sob aplausos. Pelé é o exemplo. Lula está exposto ao sol há mais de quatro décadas. Esticar esse tempo seria comprar ingresso para o futuro com moeda do passado. O ex-metalúrgico, por sua vez, sabe que chegou aos píncaros. Por que queimar a possibilidade com a arriscada tentativa de continuar à frente do palco? Quanto à candidata, pelo que deixa transparecer, não é de ficar no banco de reservas. Candidata-se também a ser o centro das atenções. Suas atitudes denotam vontade, autonomia, imposição.
Ao PT, por seu lado, interessa estender o projeto de poder que lidera, meta inviável sem o concurso de vastos apoios, a partir do PMDB, o maior partido. Os radicalismos, é oportuno lembrar, terão lugar restrito na fisionomia institucional. Essa engenharia de acomodação de camadas, pressões e interesses não vale apenas para o situacionismo. Serve também como diretriz ao grupo da oposição, liderado por Serra, caso ele venha a ser vitorioso. O eleito, seja quem for, não conseguirá fazer o País avançar sem o efetivo engajamento das maiores correntes partidárias na administração governamental. Na nova configuração, o modelo do "eu" será recauchutado e incorporará o elemento "nós", representando os correligionários, e mais "eles", parceiros de outros partidos.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação