O perdão, expresso ou tácito, tem inegável poder terapêutico. Quem perdoa se liberta do ódio e recupera a força e a vontade de viver que tal sentimento sufoca, readquire a lucidez e, sobretudo, a paz. Em “Fragmentos de Um Evangelho Apócrifo”, Jorge Luís Borges escreveu: “Não odeies teu inimigo, porque, se o fazes, és de algum modo seu escravo; teu ódio nunca será melhor que tua paz”. Nos casos de danos irreversíveis, o perdão não obriga o prejudicado a prender-se ao ofensor além do indispensável. Se é imperioso esquecer o mal sofrido, como meio necessário para seguir com a vida, é justo que se queira também tirar da lembrança quem o cometeu. A vítima de uma atrocidade não precisa ficar jogando confete no ofensor; tem o direito de querer que ele vá cuidar da própria vida e a deixe cuidar da dela. “Fazer o bem a seu inimigo pode ser obra de justiça e não é árduo; amá-lo, tarefa de anjos e não de homens” (Borges, ‘op. cit.’). Para a vítima, perdoar não significa isentar o ofensor de responder pelo fato. O papa João Paulo II perdoou Ali Agca, o terrorista turco que o atacou em 1981, mas não o livrou da prisão pelo crime. Não há incompatibilidade entre perdoar e desejar que o ofensor suporte as consequências jurídicas do seu ato.
Falar sobre o perdão fica mais complicado, espinhoso mesmo, em caso de traição conjugal. Pode parecer simples se se partir da premissa de que quem ama perdoa. Penso que é preciso primeiro definir se no caso o perdão significa manter a relação amorosa ou rompê-la sem guardar ódio pelo cônjuge infiel. Quem ama não deixa de amar assim que fica sabendo da traição. Amor não é uma veste que a gente tira ou coloca quando quer. É o coração que resolve. E o coração é insubmisso, tem mania de querer ser independente; às vezes fica assanhado e a razão tem um trabalhão para fazê-lo sossegar o facho. Se a pessoa traída cede ao desejo do coração e consegue perdoar sem entrar em conflito com a razão, ótimo. Mas, sabendo que o coração costuma ser meio inconsequente, pode ser que ela resista; aí se cria no seu íntimo um embate entre o coração e a razão. A resistência ocorre quando o cônjuge ainda ama, mas não vê motivos para alimentar esse amor que, ao invés de felicidade, lhe causa dor. É compreensível que o cônjuge traído, tomado pelo desencanto, deixe de ver no outro a pessoa que deseja junto de si para compartilhar suas intimidades. Não se pode culpar a flor por não conseguir brotar ou manter-se em solo árido. Buscar a felicidade é um direito natural e legítimo. Assim, tenho para mim que o perdão não obriga à manutenção do relacionamento. Já está de bom tamanho se a vítima deixa de amar, mas não passa a nutrir ódio mortal pelo cônjuge infiel, se não quer jogar tudo e todos contra ele, ser a pedra no seu sapato, enfim, não ama mas também não odeia.
O perdão pleno, sem rompimento, porém, é possível. É bom não decidir pela separação sem antes tentar harmonizar coração e razão, sem dar uma chance ao amor. Uma coisa que pesa a favor do cônjuge infiel é a confissão por iniciativa própria, por sincero arrependimento, pois revela decência e desejo de reparar o erro. Se a infidelidade chega por outros meios ao conhecimento do cônjuge traído, é sinal de que o cônjuge infiel não está muito preocupado em salvar o casamento. Quem quer receber o perdão precisa colocar-se em condição de merecê-lo, demonstrar que se perdeu numa dessas curvas do caminho, mas que se re-encontrou e ama o cônjuge, que deixou para trás a insensatez e quer agir de maneira condizente com o matrimônio. Isso requer nobreza. Um belo tombo, depois de um passo em falso, pode ter o efeito de fazer enxergar direito e andar na linha. Alguma coisa concreta e verdadeira precisa nascer, ou renascer, como resultado desse tombo. Quem traiu, mas quer consertar tudo, precisa conquistar quem foi traído. A pessoa traída sente-se como que esquecida, rejeitada, deixada de lado, com a autoestima no nível zero, em estado de total desorientação. Em tal situação, em que deve basear-se para decidir? Não pode ser no que os outros vão pensar, nem na piedade, nem na conveniência. Tem de ser por amor. Se o amor está enfraquecido, sufocado pela raiva e outros sentimentos, precisa ganhar força. Como, porém, conseguir isso depois de quebrado o encanto? Como olhar para o traidor sem se lembrar da traição? A saída, a meu ver, é esquecer aquela pessoa que foi infiel e prestar atenção à que agora se coloca à sua frente e que lhe tenta conquistar. Como há males que vêm para bem, pode ser que a união acabe fortalecida. Embora nunca falte quem critica a vítima que perdoa, o fato é que o perdão sempre será um gesto admirável.
Paulo Pereira da Costa, promotor de Justiça e autor do livro Pensando na Vida paulopereiracosta@uol.com.br