A sabedoria popular desenvolvida na convivência e na observação da Natureza, possibilitou às populações tradicionais a possibilidade de sobreviver, enquanto espécie, ao longo de milênios. Nossos ancestrais que viviam no campo, nas florestas e nas montanhas não bebiam água que passarinho não bebe, não comiam frutos e folhas que os animais não tocavam, corriam para seus abrigos quando viam as manadas em disparada, prenúncio seguro de temporais, ciclones e tsunamis (assistimos um recentemente no Japão).
Transmitiam seus conhecimentos às novas gerações, que os retransmitiam aos seus descendentes mesmo quando estes já viviam na polis, na urbe. Mas nos últimos 250 anos, mais especialmente a partir da revolução industrial, quando o modelo de desenvolvimento adotado já começava a produzir pobreza e exclusão social, as populações passaram a se concentrar em grandes aglomerados urbanos, o que tornou a possibilidade de observância dos ciclos e fluxos da Natureza, cada vez mais rara.
Voltamos as costas aos rios e demais cursos d’água, tratando-os como canais que levariam para longe, muito longe, os desagradáveis restos do que consumíamos. E os anos foram passando... Enquanto procriávamos íamos a busca de mais horizontes, de mais riquezas naturais, mais espaço. Inventamos novas tecnologias, descobrimos a força e o poder da energia fóssil que arrancamos do fundo da Terra, processamos, industrializamos e passamos a queimar diuturnamente nos quatro cantos do planeta.
A ciência e a tecnologia nos trouxeram mais conforto, eliminaram distâncias físicas, nos possibilitaram cruzar os céus, até para a Lua fomos, e prosseguimos em nossa trajetória de glória e poder até que um dia, de repente (terá sido de repente?), a Natureza, esta que há tanto havíamos domado, nos mostra sua face mais dura, expõe a instabilidade de seus humores. Ataca e mata impiedosamente, sem aviso prévio, sorrateiramente, coloca-nos armadilhas.
Comemos seus peixes e eles nos envenenam, bebemos sua água e adoecemos, vamos à praia e somos afogados por ondas gigantes, seus ventos varrem nossas casas, os rios ora secam, ora transbordam, transformam nossas cidades em depósitos de lixo, (de onde vem mesmo tanta sujeira?), o ar que respiramos nos destrói os pulmões, nos faz arder os olhos.
Mas agora, quando a ciência que criamos e que julgávamos capaz de solucionar todo e qualquer problema dos humanos, começa a nos mostrar que, pela primeira vez na história da humanidade, está posta em xeque a continuidade da nossa caminhada enquanto espécie no Planeta Terra, sentimo-nos desamparados, indefesos, fragilizados.
O que fazer agora, qual o papel de cada um de nós, cidadãos do Planeta? Como prosseguir à luz da tragédia anunciada? Como partir do temor que paralisa para a ação que pode trazer alternativas de caminhos, de soluções? O Dia Mundial da Água é um excelente momento para que façamos esta reflexão. Sem razões para comemorar, dediquemo-nos a pensar como vamos cuidar deste bem imprescindível para a nossa sobrevivência, vida e de todas as espécies que conosco compartilham a Terra.
Lembremos-nos que Planeta Terra é azul quando visto do espaço, mas não tenhamos ilusões, uma vez que 97% dos 2/3 de sua superfície composta de água é salgada! Dos 3% restantes, a maior parte está nos icebergs em forma de gelo. Assim a água acessível ao consumo humano, que é encontrada em rios, lagos e alguns reservatórios subterrâneos, somam apenas 0,3%, ou 100 mil km³.
Ao mesmo tempo em que aumentamos o consumo de água em nossas atividades produtivas e em nosso cotidiano, continuamos, de forma inadmissível, poluindo com lixo, esgoto e agrotóxicos, os recursos hídricos de que dispomos. Enquanto isto a escassez de água potável já atinge 20% da população e a ONU afirma que se a população mundial continuar aumentando 80 milhões de habitantes por ano, entre os anos de 2025 e 2050, 40% da população já estará sem acesso à água potável. Somente nos últimos 50 anos, aconteceram em todo o mundo cerca de 500 conflitos armados tendo como causa prima à disputa pela água.
No dia de hoje, deveríamos parar tudo para debater em fóruns, na praça pública, nos palácios, este que é, ao lado das mudanças climáticas, o maior desafio do século XXI, o acesso à água de boa qualidade, o gerenciamento adequado dos recursos hídricos de que ainda dispomos.
A partir da reflexão, do debate, (e do medo), quem sabe tomamos juízo e passamos a agir como cidadãos conscientes, adequando nossas atividades cotidianas a padrões de sustentabilidade, participando ativamente da organização de nossa comunidade, articulando-nos nacionalmente para influenciar políticas públicas sérias e ecologicamente corretas, fiscalizando, reivindicando, sentindo-nos parte da imensa e maravilhosa comunidade biótica.
Miriam Duailibi é presidente do Ecoar, uma das principais ativistas ambientais brasileiras da atualidade. Autora de diversos livros, artigos e textos sobre o tema é reconhecida internacionalmente por seus inovadores projetos socioambientais.