Até o meio do terceiro ano primário eu ia descalço à escola. Não era excentricidade nem rebeldia; eu não tinha mesmo nenhum “pisante”. E não era o único nessa situação. Ficava quieto na minha carteira, mais no fundo da sala de aula, e torcia para não ser chamado ao quadro negro, pois aí me expunha sem nada nos pés a toda a classe e isso me deixava meio constrangido, principalmente com as meninas. Eu tinha uma boa desculpa para não frequentar a escola. Porém, possuía algo muito mais valioso do que sapatos: liberdade. Eu era livre, e nessa condição fiz a escolha: queria me alfabetizar. Embora fossem anos de chumbo, nunca fui barrado ou discriminado; nem os outros “pés-descalços”, brancos ou negros. Havia rigidez nas regras de disciplina, mas acho que as professoras e o diretor pensavam que, se a pessoa estava a fim de estudar, não fazia diferença se tinha calçado ou não. Aprender me fascinava tanto que me fazia esquecer a falta de sapatos e superar a sensação de ser um peixe fora d’água.
Quando jovem eu ia muito ao cinema. Aos domingos, quase só conseguia pegar a última sessão do Cine Regina, dez da noite. Muitas vezes, durante a exibição, o sono me atacava, mas ainda assim eu continuava tentando assistir ao filme. Não sei o que me prendia: se era a esperança de que de repente a película ficasse interessante, a ponto de me despertar de vez, ou se era o medo de sair e ser tomado pelo sentimento de culpa por ter desperdiçado dinheiro com o ingresso. O fato é que, brigando contra o sono, nem bem dormia nem bem acompanhava a fita. Era um sofrimento desnecessário. Se o corpo pedia cama, eu tinha mesmo era de sair logo e ir dormir em casa, sem peso na consciência; nada me impedia, a não ser... a falta de atitude, que nada mais é do que o medo da liberdade. Eu era livre e, mesmo assim, preferia torturar-me a exercer a minha liberdade!
Mesmo livre e com capacidade de saber o que é melhor, a gente faz coisas de que seria mais sensato se abster e foge de outras, às quais deveria por bem se apegar, e isso, creio, em boa parte dos casos, é pelo mau uso, ou medo mesmo, da liberdade. O que caracteriza a liberdade é a ausência de causas impeditivas absolutas entre a pessoa e o que ela deseja. Eu gostaria de voar como um pássaro, mas é impossível. Ser livre não é fazer o que quer: é fazer o que pode. Porém, muitas vezes, o que pode não é o que deve, que por sua vez nem sempre é o que a gente quer fazer, e sim o que é preciso. A liberdade existe para o bem e para o mal. Cabe à pessoa escolher como utilizar. Restringe-se a liberdade com o mau uso dela. A gente é livre para fazer o que der na telha, mas o real exercício da liberdade se revela quando nem nossos atos, nem as causas e conseqüências deles, têm o poder de nos escravizar. Muitas vezes a gente se torna refém não do que faz, mas da simples ideia de fazer; vira prisioneiro da própria mente. É o caso de alguém dominado pelo desejo de vingança. A liberdade tem mais a ver com o nosso íntimo do que com qualquer outra coisa. Pode acontecer de uma pessoa sentir-se vilipendiada, mas, no pleno exercício da liberdade, preferir se aquietar, em vez de reagir, e então não gasta energia com isso porque traz no âmago a convicção de que tudo voltará naturalmente ao seu lugar, no devido tempo.
Liberdade é vontade. Não é algo para ser usufruído pela metade. Liberdade não significa facilidade; não raro, é fazer coisas que preferiríamos não precisar fazer, mas que têm de ser feitas. Liberdade não é só prazer. Vejo redundância em dizer liberdade com responsabilidade; esta é intrínseca àquela. Maior a liberdade, maior a responsabilidade. Ser livre dá muito mais trabalho do que não ser. Por isso a liberdade amedronta. Ser livre é ser capaz de responder pelos próprios atos, é ter autodeterminação, é ser dono de si, é sustentar-se sobre a própria estrutura, é dizer ‘eu largo’ quando, pensando que não temos opção, nos dizem que ‘é pegar ou largar’. Ser livre não é necessariamente ser contra, não é discordar por discordar. O real exercício da liberdade não se destina a provar que se é livre. O meu objetivo, quando ia descalço à escola, não era mostrar que era livre; eu só queria estudar. A liberdade revela-se na convicção, na ação isenta e firme, resistente a pressões externas, no cumprimento do dever. A liberdade existe se, ao darmos passos errados, temos como voltar atrás. Ser livre é não se deter entre o desejo e o que é necessário fazer para realizá-lo. É vencer a inércia, agir sob o domínio da razão. É reconhecer e, sobretudo, respeitar a liberdade alheia.
Paulo Pereira da Costa, promotor de Justiça e autor do livro “Pensando na Vida” paulopereiracosta@uol.com.br