Não vejo razão para a enxurrada de críticas ao livro de português “Por uma vida melhor”, da professora Heloísa Ramos, adotado pelo MEC. O capítulo I (‘Escrever é diferente de falar’) mostra que é possível ser compreendido mesmo falando sem concordância verbal ou nominal (‘Nós pega o peixe’, ‘Os livro...’), no uso da denominada norma popular da língua. O livro não estimula nem falar nem escrever errado. Pelo contrário, mostra a forma certa e adverte para a necessidade de muita leitura para dominar a norma culta do idioma, pois há situações em que não se pode afastar dela. O fato é que é possível fazer-se entender sem atender plenamente às regras gramaticais e ortográficas. Jovens e adolescentes, conversando entre si, falam “tipo” inúmeras vezes, sem necessidade. Pude notar até num grupo de estudantes da USP, num restaurante. Alguém acha que eles fazem o mesmo quando escrevem ou estão numa situação mais formal? A língua falada sofre variações regionais. Em “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, uma das maiores obras-primas da literatura, há “Se despedimos.”, “eu nem não tinha”, “seu negócio dele”, “avançação”, “pronunceia”, “tiroteiamento”, etc. Deve-se então proibir sua leitura? Várias composições antológicas da MPB deixam de lado o português formal. Em “Saudosa Maloca”, de Adoniran Barbosa, tem “...nóis nem pode se alembrá...”. Vejam a letra de “Vaca Estrela e Boi Fubá”, entre outras belas poesias de Patativa de Assaré. Quem não entende? Aprende-se a falar em casa, muito antes de ir à escola. A função da escola é ensinar a ler e escrever, e é óbvio que tem de fazê-lo segundo as regras oficiais, primar pela técnica, mas é salutar que o aluno, ao mesmo tempo em que aprende regras formais, tenha oportunidade de desenvolver o senso crítico. Saber pensar tem de vir antes de saber falar. O aprimoramento da linguagem falada cabe ao aluno, como efeito natural do domínio da escrita. Ao referir-se à fala popular como uma variante da língua, o livro é honesto, deixa a cargo do aluno a escolha de quando empregar, convida-o a pensar. Não se recusa um convite assim.
Se é para zombar de quem não fala como redige, somos todos motivo de riso. Grande parte da linguagem escrita é diferente da verbalizada. Vejamos. Só se fala o ‘o’ no fim das palavras quando é tônico: judô, avô. Fora isto, vira ‘u’ átono; século é ‘séculu’, junto é ‘júntu’. ‘Muito’ se pronuncia ‘múintu’. ‘Pouco’ é ‘pôucu’ e até ‘pôcu’. ‘Ou’, no fim das palavras, geralmente se resume a ‘ô’: pulô, falô, chorô. A consoante ‘r’ no fim dos verbos no infinitivo costuma sumir: falá (falar), fazê (fazer), olhá (verbo olhar). Se não é tônico (ipê), ‘e’ passa a ‘i’ átono no fim do vocábulo; sozinho também. Parente é ‘parênti’, dele é ‘dêli’. ‘I agora?’. ‘O que é isso?’ fala-se ‘U qui é íssu?’; ‘você de novo?’ vira ‘você di nôvu?’. Grafa-se ‘hoje’, mas se fala ‘ôji’; ‘pode’ é ‘pod’ ou ‘pódi’. Eu falo mais ‘cê’ do que ‘você’, mais ‘tá’ do que ‘está’. “Cê tá bem mêsmu?”. Falo ‘rúin’ em vez de ‘ruim’. A preposição ‘para’, na maioria das vezes, é ‘pra’. ‘Trouxe isto pra você’. Fala-se ‘para’ quando é verbo: ‘para de enrolar; para pra pensar’. Salvo se for tônico (refém), ‘em’ no final transforma-se em ‘i’ átono. Viagem é ‘viági’, passagem é ‘passági’. ‘Io’ no fim passa a ‘íu’ ou ‘il’. Pronuncia-se ‘privilégil’, ‘privilégiu’, e não privilégio; ‘médil’ e não médio. ‘Não’, principalmente para os homens, é ‘num’. Ainda ‘num’ vi nada igual. Exceto quando vem só: ‘Tá calor? Não’. Ou quando é para frisar: ‘não, e pronto’. ‘Az’, ‘as’ ‘os’, comumente viram ‘áis’, ‘ôis’. ‘Pôis” em vez de pôs; ‘fáis” e não ‘faz’. ‘Ez’ e ‘ês’ viram ‘êis’: ‘vêis’ e não ‘vez’, ‘inglêis’ e não ‘inglês’. ‘Es’ se reduz a ‘s’: strela, sport. De grafias diferentes, ‘estéreo’ e ‘estéril’ têm o mesmo som: ‘stéril’.
O idioma é um meio de comunicar-se. Para uma ideia ser compreendida, não é necessária uma perfeita verbalização. Pra mim, mais vale a ideia, mas não há dúvida de que bom mesmo é ter a ideia e saber expô-la com clareza. Nós não somos da língua: a língua é nossa, é um instrumento para nossa utilização. Não é ela que deve dispor de nós, mas o contrário. Entretanto, para bem empregá-la, tirar mais proveito, é necessário conhecê-la, ser íntimo, gostar dela. Intimidade exige contato, proximidade. Mais contato com a linguagem correta propicia mais naturalidade no seu uso falado ou escrito. É essencial ler muito, pensar. O brasileiro lê pouco, tem preguiça de mexer os neurônios. A propósito do título, não falo nem certo nem errado. Falo cértu i errádu. E você?
Paulo Pereira da Costa, promotor de Justiça e autor do livro “Pensando na Vida” paulopereiracosta@uol.com.br