Às entidades filantrópicas da saúde é aplicado o rigor da lei, já para os parceiros da Federação Internacional de Futebol, isso não vale
Era uma vez um homem muito rico, dono de todos os apartamentos de um prédio localizado na zona nobre de São Paulo. Um dia, um faxineiro o procurou e, constrangido, explicou a situação financeira difícil pela qual passava em razão da saúde debilitada de sua esposa. Mais constrangido ainda, ele pediu adiantamento de R$ 500,00 do seu salário para pagar despesas não previstas. Em meio a impropérios (ele era - e é - mal educado), o empresário passou um esculacho no empregado e negou o pedido.
O faxineiro, resignado, retirou-se e foi dar outro jeito.
Passadas algumas horas, o filho do empresário foi ao escritório e lhe pediu R$ 1.500,00 para comprar um novo modelo de equipamento eletrônico que acabara de chegar nas lojas. Sem pestanejar, o pai tirou o dinheiro da gaveta e lhe deu.
Não sei porque, lembro-me desta história quando leio as notícias relativas à Copa do Mundo de 2014, a ser realizada em nosso país tupiniquim.
O Brasil fez de tudo para sediar o evento. De tudo mesmo. Mas a que custo e sob quais circunstâncias?
A Fifa exige uma série inacreditável de coisas e condições do país que se propõe a sediar a Copa do Mundo. Ela exige que o país-sede conceda incentivos fiscais para os seus parceiros, o que, na prática, imuniza todos que gravitam em torno do evento, especialmente quanto ao pagamento de impostos que qualquer pessoa ‘normal’ pagaria. E ai do governo que não atender as suas exigências.
Obviamente que o Brasil está fazendo o dever de casa e atendendo a todas as exigências da Fifa, como estrela pop mundial única e superpoderosa que é. Assisti, emocionado, o esforço feito pelos nossos políticos para aprovar regras específicas, facilitadoras, flexíveis e mais do que especiais (apelidadas de RDC - Regime Diferenciado de Contratações) para as empresas que participarão da infraestrutura e dos itens que compõem a Copa do Mundo. Apesar de eu nunca duvidar de nada, custei a acreditar na proposta da Medida Provisória do Executivo federal de imposição de sigilo no orçamento das propostas das concorrentes até a conclusão da licitação ou mesmo a possibilidade de inexistência desta, ou da realização de ‘licitações-relâmpago’, em prol da rapidez necessária para a implementação das ações. E olha que sabemos da nossa escolha desde 2007. Até os limites legais de percentuais dos aditivos ao contrato principal deixariam de existir, pois a Copa é um evento no qual o Brasil não pode falhar. Afinal, ela será “a vitrine do país para o resto do mundo”. Contive o choro. No fim, o Congresso Nacional restringiu alguns desejos delirantes e incontidos do governo federal e restabeleceu o bom senso. Mas o que mais surpreende é a ideia inicial.
O governo idealizou e definiu regras flexibilizadoras para que a Caixa Econômica Federal e o BNDES dispensem a apresentação, pelas empresas, de alguns documentos técnicos, inclusive projetos básicos, para a liberação de recursos financeiros, até a título de “despesas inadiáveis”, que serão na casa dos bilhões de reais.
O governo deu uma banana para as recomendações dos órgãos de controle, do Ministério Público e das demais vozes e autoridades que ousaram criticar as medidas desburocratizadoras e agilizadoras gestadas por ele. E assim se fez. É claro que a encenação das discussões e de audiências públicas aconteceu. Como sempre.
E as Santas Casas e as entidades filantrópicas que atendem os cidadãos por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), o que têm elas a ver com isso? Tudo. Elas são o faxineiro da história acima contada. Elas pleiteiam aumento, incremento e diversificação de custeio de suas atividades em momento não oportuno para o governo. Elas são incovenientes, pois sempre vem com assuntos que destoam do momento em que a conjugação de forças dos governos para viabilizar a Copa do Mundo é a ação principal e única a ser pensada. Será que elas não se mancam?
Ás entidades filantrópicas da saúde é aplicado o rigor da lei, como deve ser com todos, aliás. Delas se exigem projetos, documentos, declarações, certidões, registros, plantas, fotos, assinaturas e tudo o mais o que nossas as normas jurídicas são capazes de prever com tanta facilidade e distanciamento da realidade. Para os parceiros da Fifa, não. As prestações de contas delas são abertas e reabertas pelos órgãos de controle, sem que estes observem (ou ignoram?) os princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade, que são de aplicação obrigatória em suas ações. Para os parceiros da FIFA, não. As Santas Casas não são a vitrine do Brasil para os estrangeiros.
As Santas Casas e as entidades filantrópicas não foram objeto de pensamento nem destinatárias de um Regime Diferenciado de Contrações para os seus fornecedores ou para ser utilizado nas reformas físicas e investimentos. De nenhum Poder. O papel delas é continuar a seguir o seu caminho no mundinho de dificuldades no qual estão mergulhadas. Elas que se virem fazendo quermesses, bingos, bazares e outras atividades que visam arrecadar receita complementar para tapar o buraco que a tabela do SUS deixa em seus orçamentos, facilmente comprovado pelos balanços.
Quem sabe, um dia, algum político resolva sugerir a criação de um Regime Diferenciado de Contratações para as Santas Casas e demais entidades filantrópicas que atuam na área da saúde, ou para o Terceiro Setor, em geral, recheado com benesses e incentivos fiscais que efetivamente façam a diferença para que elas interrompam o ciclo de miséria e arrochos que vivenciam ao longo das últimas décadas.
Contribua para que isso aconteça, caro leitor. Interpele o vereador, deputados estadual e federal, senador, prefeito, governador e presidente em quem você votou. Exija dele ações neste sentido. Realiza eventos em sua cidade e convoque tais políticos para que expliquem, de viva voz, o que estão fazendo em prol das entidades atuantes na área da saúde da sua região.
A Copa do Mundo deve durar dois meses. Antes e depois dela, as Santas Casas e as entidades filantrópicas continuarão a atender voluntariamente os brasileiros que necessitam de serviços de saúde, obrigação constitucional primariamente imposta ao Estado e que ele descumpre diuturnamente. Não é incrível? E que venha o hexa!
Josenir Teixeira - Mestre em Direito e especialista nas áreas da Saúde e do Terceiro Setor