A cena se repete em famílias de todas as classes e de diferentes níveis educacionais. Diante do comportamento de oposição do filho, os pais recorrem à punição física como “método educativo”. Imediatamente, a criança cessa o comportamento indesejado por temor aos adultos, que demonstram ter mais força física que ela e não por uma aprendizagem quanto aos significados (pessoais, sócias, afetivos) embutidos em tal comportamento. Será que podemos chamar a isso de educação?
Os defensores da palmada argumentam que, quando a criança desafia a autoridade dos pais e testa os limites, a demonstração de força se faz necessária para que entenda que é mais fraca e, assim, se submeta. Especialmente se ela não obedece a uma ordem que foi repetida.
Os castigos corporais vão da palmada ao espancamento, passando pelos abusos psicológicos infelizmente comuns nas relações familiares, como ameaças de abandono, castigo, rejeição, humilhação, indiferença e exigência exagerada de rendimento intelectual, esportivo ou outros tão comuns na sociedade atual. Muitas vezes a criança responde à agressão dizendo que “não doeu” ou se recusando a admitir o sofrimento, o que costuma aumentar a ira dos pais e a severidade da punição.
A demonstração de força dos adultos é obviamente desnecessária. É claro que a criança percebe quem é o mais forte, pelo menos fisicamente. Além disso, mesmo a palmada, considerada inofensiva por muitos pais, é uma agressão à integridade física e psíquica do filho, pois nesse embate ele estará sempre em desvantagem.
Construção interior
A criança é uma pessoa em formação, estando em franco processo de construção de um mundo interno composto de normas, regras, valores, gostos e desgostos. Suas experiências são o meio pelo qual aprende e apreende o mundo ao seu redor. As experiências são matéria-prima de realização do ser humano que vai se construindo.
Ela não está testando os pais quando os desafia. Está testando a si mesma e experimentando os próprios limites, aprendendo sobre si e sobre os outros. Está construindo regras que estarão na base de seus relacionamentos futuros. Cabe aos adultos responsáveis pela educação da criança dar-lhe os parâmetros que demarcam os limites entre ela e os outros, o que é permitido, o que é indevido, o que é proibido. Isso, sim, é educar.
Gritar, ameaçar e bater na criança não a educa e sim comunica ou ensina que a força física é o instrumento para se impor a realização de um desejo. Bater é uma forma de coação, não de educação. Coagir é usar a força para conseguir o que se quer. Se bater educasse, a palmatória ainda seria usada na escola e os pais concordariam que os professores castigassem seus filhos ou que vizinhos e amigos os corrigissem com “uns tapas”, toda vez que se comportassem de forma inadequada fora de casa.
Esse comportamento ambíguo não causa estranhamento, porque o filho ainda é visto pela sociedade como propriedade dos pais. Se alguém comete o desatino de bater no filho de outro, certamente será processado e punido pela lei. Afinal, bater numa criança é crime. Mas os pais continuam batendo nos filhos! Reconhecem que esse é um ato de covardia, se ocorre fora de casa, mas não o consideram como tal quando se dá entre as paredes do lar.
Violência gera violência
Será que um pai ou mãe acredita mesmo que está fazendo bem ao filho quando lhe castiga com palmadas e humilhações? Ou simplesmente não conhece outros recursos educativos? A maioria dos adultos está estressada e impaciente demais para cumprir com a função inevitável da paternidade/maternidade. As pessoas querem obediência e usam a força física como recurso para obtê-la. E o pior é que a criança aprende esse artifício e passa fazer uso dele.
As escolas estão infestadas de comportamentos violentos. Vivemos numa sociedade na qual as pessoas sofrem crescentemente com as psicopatologias do medo: transtornos de ansiedade, transtornos obsessivos, transtorno do pânico e fobias, entre outras.
Frequentemente as crianças que não usam de comportamentos agressivos, provavelmente porque não aprenderam isso em casa, apanham na escola e não sabem se defender. Os pais que têm essa consciência se vêm diante de um grande desafio: ensinar ao filho maneiras de se proteger da violência que o rodeia sem incentivá-lo a adotar comportamentos agressivos.
Os maus tratos às crianças, prática comum ao longo de séculos, vem sendo alvo de atenção dos profissionais de saúde e educação nas últimas décadas. Os educadores, profissionais de saúde e demais responsáveis pela difusão da informação e da formação de indivíduos na nossa cultura têm papel fundamental na proteção da criança e na formação de uma nova mentalidade relativa à educação e à punição no seio da família.
Só a lei não basta
Pesquisas científicas mostram que pais que acreditam na punição física como método educativo batem nos filhos com muita frequência, especialmente quando estão sob estresse. Também tem sido demonstrado que abusos físicos e emocionais cometidos com atitudes punitivas estão associados a problemas de conduta e de saúde mental da criança, como ansiedade, depressão, isolamento social, abuso de drogas e suicídio.
A instituição de uma lei que proíbe o castigo físico – embora este tenha sido um passo fundamental – não tem sido suficiente. Faz-se necessário, portanto, conscientizar os profissionais de saúde e educação para que cumpram sua obrigação legal de notificar os maus-tratos a crianças e adolescentes.
Mais importante ainda, é preciso levar informações às famílias sobre estratégias educativas apropriadas, baseadas em princípios éticos, no respeito, na colaboração e, principalmente, no amor. Assim estaremos contribuindo para uma sociedade mais saudável, formada por pessoas menos violentas, que não sofram de tantos medos e possam viver e conviver em paz.
*Vânia de Morais é psicóloga