Devemos falar mais da indispensabilidade e não tanto da importância da experiência vital de vinculação que se cria através das relações sociais básicas. Trabalhar a resiliência é o que importa para a construção da identidade dos novos sujeitos de direitos que são as crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade ou afastadas da convivência familiar. Estar com eles num acolhimento quase desmedido, pois é a condição para que pensem em mudar a trajetória. E nós educadores facilitamos que eles se convençam que podem mudar e que o futuro não está traçado ainda.
Como Conselheiro de Direitos, onde advogo o interesse superior de Crianças e Adolescentes, até mesmo contra o legalismo controlador, burocrático ou tecnicista do Judiciário, e da falta de orçamento do Executivo que engendra formas de atendimento massificador, impessoal e corporativista. Também me inspiro na minha história pessoal em terras da Amazônia onde trabalhava a vinculação das comunidades ribeirinhas com seu território, seu passado, sua resistência, revisitando mitos, lendas e casos de cobra grande, dos fantasmas das florestas e dos lagos. Enfim, para que se tornassem capazes de se identificar como povo protagonista, portador de autoimagem positiva e potencializada para mudar o cenário de exploração e abandono.
Do lugar de gestor de uma Organização da Sociedade Civil, dentro da qual me situo por 17 anos na concretização da proposta fundacional de restabelecer e/ou estabelecer vinculação de crianças e adolescentes com pessoas reais, mas que tenham colo, olhar, cheiro, ouvidos, mãos e coração de gente, quer sejam familiares quer sejam cuidadoras residentes.
Por mais que aceite a maternidade social como mito, a vertente das Aldeais Infantis contra a institucionalização de crianças e adolescentes foi implacável e precisou num momento evolutivo ser superdimensionada com a caraterização e qualificação das cuidadoras residentes como MÃES SOCIAIS. E esse fato no Brasil e em Brasília ficou por conta das Aldeias Infantis SOS Brasil.
Em “Orientações Técnicas Para os Serviços de Acolhimento” – Parâmetros para o Funcionamento – contatamos o principio da OFERTA DE ATENDIMENTO PERSONALIZADO E INDIVIDUALIZADO que favorece condições de apoio, segurança e cuidado de cada criança e adolescente que tem tudo a ver com a vinculação afetiva.
A proteção de um lar para cada criança só pode ocorrer mediante uma relação que cria identidade, personaliza, implica respeito à história de vida, ao apego ou vinculações passadas que foram fragilizadas com a família de origem, ou grupo social ou rede comunitária daquela criança. Esta criança precisa de figuras simbólicas, pelo menos, que sejam provisórias, mas que sirvam para religar os elos que anteriormente estabeleciam com suas famílias.
Assim sendo, escolhemos uma modalidade de atendimento que mais considerasse o interesse das crianças afastadas da Convivência Familiar e Comunitária. E é certo que as “Orientações Técnicas” apontam em cada modalidade que a figura dessa vinculação é a cuidadora de crianças de forma a mais aproximada possível. Aí se experimenta a CASA LAR, na sua radicalidade estruturante e metodológica. E não dá para acreditar em vinculação sem um jeito especial do viver participativo, afetivo, fiel, tolerante e convincente pelo cuidado real de cada menino ou menina.
Precisa-se se mulheres que sejam pontes, de mães que seja redes aconchegantes, de mãos amigas que segurem na outra mão que é a mãe biológica. Tudo para sustentar duplamente o filho ou filha que por algum tempo assim se fez como SUJEITOS vinculados. Precisa-se de Cuidadoras Residentes que não omitam a reta intenção de ser apenas um enxerto que melhora a floração
Para concluir, apresento a partir de minha prática de gestor e de filósofo e não de psicólogo, três condições que sedimentam a indispensabilidade da vinculação dentro da CASA LAR.
1. Autonomia econômica da mulher no cuidado de cada criança ou adolescente
Não precisamos evocar Marx, mas certamente a mulher que se sente creditada financeiramente como profissional, desfruta maior autoestima e estima daqueles de quem cuida e com quem dialoga e negocia. A garantia de sua autodeterminação financeira funciona como espaço de sensibilidade e liberdade frente às respostas possíveis de atenção qualificada que confere as crianças. Sem essa liberdade, temos uma mulher pedinte que se concebe inferiorizada e subalterna. Quase sempre dependente de autorizações do comando machista institucional ou da gestão indiferente do Estado. Não preciso falar que um lado bonito da gastronomia tem ensinado que o estar junto à mesa, comer do mesmo pão, depois de um tempo de sentir o odor da comida e o gosto do alimento nutre-se o afeto e cria-se a amorosidade incondicional para as intervenções domésticas e o diálogo.
2. O autocuidado profissional com liberdade não institucionalizada.
Horas seguidas de trabalho precisam ser vividas também na direção do amor próprio, no cuidado do corpo e do espírito. Assim, a cuidadora terá o prazer de viver e de dedicar-se para os que estão no círculo de sua atenção e afeto. Para tal, esta profissional vocacionada precisa de investimento formativo contínuo, de formas sutis para dar evasão à criatividade, a fantasia e às metas pessoais. Instituição alguma, mesmo em nome da lei pode restringir a liberdade de ir e vir, ou de limitar-lhe os movimentos em nome de Contrato de Trabalho funcionalista. Senão a pressa para chegar à próxima folga ou “render” o plantão será uma fuga de si e dos outros que cuida, e jamais a oportunidade de se recrear, buscar novas forças e construir laços.
3. Casa descentralizada em ambientes residenciais como vizinhos entre outros vizinhos.
A defesa ética de crianças mobiliza forças interiores que jamais imaginávamos ter ou vislumbrar. A militância sem chegar às raias do fanatismo inaugura em cada mulher uma sensação satisfatória e se legitima quando perto de outras mulheres se sentem fortes com a causa que defendem. Uma rua ou uma comunidade de pessoas tende ao companheirismo na trajetória de vida quando diante dos mesmos desafios.
Estamos convencidos e comprometidos que o Sistema Único da Assistência Social (SUAS) com todo o seu aparato promissor trabalhe para que todas as crianças consigam se vincular e encontrar o próprio LAR onde possam se desenvolver e se lembrar de uma INFÂNCIA FELIZ.
*Nelson José de Castro Peixoto é filósofo e Conselheiro de Direitos