Neste tempo natalino desejamo-nos mutuamente “os melhores votos”, participação na “salvação quem vem de Deus” por meio de Jesus Cristo, o Salvador ou Libertador.
Mas sejamos realistas: essa salvação não funciona sem a nossa participação ativa. Não “ativista”, mas “ativa”, no sentido de, ativamente, nos deixarmos transformar por aquilo que acolhemos e colaborarmos para transformar o mundo, de modo que “a fidelidade brota da terra e do céu se inclina a justiça” (Salmo 85,12).
Penso agora numa recente publicação que circula entre nós: “Outro cristianismo é possível”, de Roger Lenaers (Ed. Paulus). O autor, talvez com certa unilateralidade, se esforça por acabar com a dicotomia (ou esquizofrenia) da crença num “deus no alto” que deve resolver os nossos problemas aqui em baixo. O autor retoma os temas do livro “Honest to God” (“Um Deus diferente”) do bispo anglicano John A. T. Robinson nos anos de 1960. Lenaers, que hoje tem 87 anos, mostra que a linguagem e a prática de nosso cristianismo não condizem com a imagem do mundo do homem moderno. Por isso, nosso “deus” fica artificial e sem suscitar interesse.
É a questão da secularização, que atinge tanto o Brasil quanto a Europa. Penso, contudo, que Lenaers não articula bem a resposta adequada a esta questão. A resposta não está na exclusão de certo modo de falar, mas na hermenêutica, na interpretação de nosso modo de falar de Deus. A mim não me choca, por ser anticientífica, a representação de anjos aparecendo aos pastores de Belém. Mesmo se não foi literalmente assim, e mesmo que os anjos representem o “deus no alto” que Lenaers quer eliminar do dicionário, a mensagem de “paz aos que são do seu agrado” (Lucas 2,14) me atinge e me faz refletir sobre o que significam “paz” e “ser do seu agrado” - e, sobretudo, sobre a missão daquele que nasceu em Belém.
Como explica a Exortação Apostólica “Verbum Domini” de Bento XVI, a Bíblia e a Tradição da Igreja, ritos e dogmas, pontos de fé e de moral, tudo deve ser interpretado, no Espírito que inspira tanto a Bíblia quanto a vida da comunidade de fé. Interpretar não é dobrar o sentido dos textos ou substituir as palavras originais por mais modernas e mais ‘flexíveis’. É descobrir nas expressões da Tradição viva (que inclui a Bíblia) o sentido para nós aqui e agora, sem trair o ‘Evento’ do qual ela nasceu: o dom de Deus no nascimento de seu ‘Filho’, Jesus, que deu sua vida por nós por amor fiel até o fim.
Ora, precisamente o sentido vital deste Evento único fica ofuscado quando se vive, por assim dizer, em dois mundos, que não combinam um com o outro, um mundo natural, em que se viaja de avião, e um mundo sobrenatural, em que funcionam as asas dos anjos. Nossa imagem do mundo deve ser coerente. Não precisamos imaginar um outro mundo para Deus. O mundo é nosso, mas Ele no-lo deu. “Os céus são os céus do Senhor; a terra, Ele a deu aos filhos de Adão” (Salmo 115,16). “Tudo é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo, de Deus” (1Coríntios 3,22c-23). E Deus mesmo, onde fica? Ele ó o Mistério, o Inefável, Aquele que está sempre além de nossa imagem do mundo, mas se manifesta no mundo, especialmente em Jesus de Nazaré, como ‘paradigma’ da profundeza de amor sem fundo e sem fim.
Um mestre medieval inventou pintar um crucifixo acima do presépio de Belém. Anacronismo crasso, mas interpretação acertada: aquele que nasceu em Belém é o mesmo que dá sua vida no Gólgota, “o presépio e a cruz são da mesma árvore” disse um teólogo antigo. E no fundo do quadro vemos as cidades do mundo inteiro, unidas aos Reis Magos na adoração do Menino.
*Johan Konings é teólogo