O Supremo Tribunal Federal protagonizou nesta semana um marco histórico: pela primeira vez na República, um ex-presidente foi julgado por sua suposta participação em uma trama golpista. Jair Bolsonaro, ao lado de outros sete réus apontados como integrantes do núcleo “crucial” da ação penal, enfrentou acusações graves que repercutiram em todo o mundo. Mais do que a figura do acusado, o episódio revela a maturidade institucional de um país que consegue submeter às regras do processo penal até mesmo aqueles que ocuparam a mais alta função do Estado.
Entre os crimes imputados destacam-se dois previstos pela Lei 14.197/21, que substituiu a antiga Lei de Segurança Nacional e inseriu no Código Penal um título específico para os crimes contra o Estado Democrático de Direito. O artigo 359-L define como crime a tentativa de abolir o regime democrático por meio de violência ou grave ameaça, com pena de quatro a oito anos de reclusão, além da sanção correspondente à violência empregada. Já o artigo 359-M tipifica a tentativa de golpe de Estado, punida com reclusão de quatro a doze anos.
Esses dispositivos trazem uma peculiaridade dogmática importante: são exemplos do chamado crime de atentado, também conhecido como crime de empreendimento. Diferente da maior parte dos delitos, em que o crime só se consuma quando o agente consegue atingir o resultado descrito na lei, aqui o verbo típico já é “tentar”. Em termos simples, significa que a simples prática de atos que caminhem em direção ao resultado já configura o crime, ainda que o objetivo final, abolir o Estado Democrático de Direito ou depor o governo legitimamente constituído, não seja alcançado. Essa técnica legislativa foi pensada justamente por que, se um golpe tivesse êxito, seria impossível esperar que o novo regime autoritário punisse a si mesmo.
A questão central, no entanto, é saber onde termina a preparação e onde começa a execução. A doutrina penal desenvolveu diferentes critérios para essa análise: a teoria objetivo-formal exige que o agente pratique parte da conduta descrita na lei; a teoria objetivo-material considera suficiente que os atos coloquem de fato em risco o bem jurídico protegido; e a teoria dos atos intermediários valoriza a proximidade entre a preparação e o resultado pretendido. Em linhas gerais, podemos dizer que apenas pensar no crime não é punível, e a fase preparatória, como reuniões ou conversas, em regra também não é. Já quando os atos assumem caráter concreto e idôneo para colocar em risco o funcionamento das instituições, considera-se iniciado o momento da execução, e o crime de atentado se consuma.
Esse modelo legislativo demonstra que a Lei 14.197/21 procurou equilibrar dois polos fundamentais. De um lado, garante rigor no combate a atos violentos que ameacem a democracia. De outro, assegura que manifestações críticas ou protestos pacíficos não sejam confundidos com delitos contra o Estado de Direito. A liberdade de expressão permanece protegida, mas não pode servir de pretexto para justificar condutas que busquem a destruição da própria ordem constitucional.
Em última análise, o entendimento penal aplicado aos crimes de atentado reafirma a função essencial do direito: proteger bens jurídicos fundamentais sem ceder a interpretações pautadas por preferências políticas momentâneas. A preservação do Estado Democrático de Direito exige não apenas a previsão legal de sanções severas, mas também o respeito ao devido processo, à ampla defesa e ao contraditório. É nesse equilíbrio, com firmeza contra a violência e lealdade às garantias, que se sustenta a solidez das instituições democráticas.