Infelizmente não há uma só semana, nesta segunda década do século XXI, que a imprensa não noticie um ataque terrorista em algum lugar do mundo. Além de todas as terríveis e dramáticas consequências humanas que o tema envolve, uma questão jurídica pode ser levantada: seria possível – e, em caso afirmativo, em que medida – responsabilizar o Estado por danos causados por atentados terroristas? Pensemos no Brasil, à luz do nosso panorama normativo.
O Brasil, desde 1946, adota, em relação à responsabilidade civil do Estado, a teoria do risco administrativo. O que significa, em essência, que o Estado responde sem culpa, porém fica livre de responsabilização se conseguir demonstrar que não existe nexo causal entre o dano e a ação ou omissão imputada a ele (em outras palavras, se o Estado provar a culpa exclusiva da vítima, o caso fortuito ou força maior). Isso impõe desde já uma pergunta: existem casos no direito brasileiro de adoção do risco integral? No risco integral, o Estado responde mesmo se estiverem presentes as excludentes de responsabilidade civil. Isto é, no risco integral, ainda que não haja nexo causal, a responsabilidade se impõe. É algo que foge inteiramente aos pressupostos da responsabilidade civil, por isso só pode existir quando imposto pela Constituição ou pela lei, com sólidas razões normativas para tanto.
Uma hipótese possível de risco integral – lembremos que deve haver previsão explícita na Constituição ou nas leis – seriam casos de aeronaves atacadas por atentados terroristas. O Brasil, após o 11 de setembro de 2001, editou duas leis sobre a matéria. A Lei n. 10.309/01, estatui: “Art. 1o Fica a União autorizada a assumir as responsabilidades civis perante terceiros no caso de danos a bens e pessoas no solo, provocados por atentados terroristas ou atos de guerra contra aeronaves de empresas aéreas brasileiras no Brasil ou no exterior”. Observe-se que não há nexo causal entre a ação ou omissão da União e o dano. Apenas se autoriza que ela arque com as respectivas indenizações.
Posteriormente, a Lei n. 10.744/03 esclareceu que as vítimas não precisam ser passageiros. Ampliou a indenização não só para atentados terroristas, mas também para atos de guerra ou eventos correlatos. O dano pode ocorrer no Brasil ou no exterior, mas precisa ser contra aeronaves de matrícula brasileira operada por empresa brasileira de transporte aéreo público. Foram expressamente excluídas as empresas de táxi aéreo. Previu-se que o montante global das despesas de responsabilidade civil não poderá ultrapassar 1 bilhão de dólares. A lei consignou ainda que as indenizações dizem respeito apenas à reparação de danos corporais, doenças, invalidez ou morte, excluídos quaisquer outros danos (morais, à honra, ao afeto, à liberdade, à profissão, ao respeito aos mortos, à psique, à saúde, ao nome, ao crédito, ao bem-estar).
Não deixa de ser curiosa a menção casuística feita pela lei a certas hipóteses de danos. Naturalmente, isso não impede que eles sejam pleiteados da empresa aérea ou, dependendo das circunstâncias, do próprio Estado. Sem excluir o próprio causador do dano, quando seja possível responsabilizá-lo.
Conforme dissemos acima, em relação aos atos terroristas, o início do século XXI trouxe, lamentavelmente, uma nova (e terrível) realidade. Não propriamente nova, mas que se intensificou nos nossos dias. Os chamados homens-bombas causam tragédias inomináveis e colocam na ordem no dia uma questão incômoda: como deter alguém que está disposto a se matar num ato assim? Além deles, o terrorismo ganhou uma face nova, e igualmente terrível: a do chamado “lobo solitário”. São jovens desajustados que, em nome de ideias radicais, saem para matar o maior número de vítimas possíveis. Aconteceu no Brasil, numa escola pública no Rio de Janeiro. Aconteceu na França, há poucos dias, quando um jovem de 23 anos, francês, islamita radical, matou sete pessoas, entre eles um rabino e seus três filhos.
Já é comum, há algumas décadas, na jurisprudência nacional, responsabilizar o Estado por atos de terceiros, desde que esteja configurada a relação causal entre a omissão estatal e o dano. Não são raros, nesse sentido, julgados que responsabilizam o Estado por morte de presos por companheiros de cela e até por suicídio de detentos. Também em caso de tiroteios entre policiais e assaltantes, mesmo que os tiros que causem danos partam dos assaltantes. Também casos de danos sofridos em escolas públicas (bullying, por exemplo), causados por outros alunos, o Estado tem sido responsabilizado.
O fundamental, na responsabilidade omissiva, é evidenciar, com a solidez necessária – algo frequentemente complexo e nebuloso – o nexo causal. O Estado responde, é certo, sem culpa, porém é preciso que haja nexo causal entre sua ação ou omissão e o dano apontado. É preciso, ao analisar o caso concreto, verificar se a omissão estatal é juridicamente relevante. Inquirir se o Estado tinha o dever de agir para evitar o dano. Só a análise dos casos concretos poderá nos dar respostas. Uma coisa é certa: não é simples nem fácil caracterizar com clareza o nexo causal que liga a omissão ao dano.
*Felipe Peixoto Braga Netto é Procurador da República