Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
“As notícias não são animadoras”, disse o conceituado médico Benjamim, “os exames apontam para um quadro irreversível e...”
“Quanto tempo ainda tenho, doutor?”, perguntou o paciente Euzébio Granada, preenchendo a constrangedora pausa na fala do doutor.
“Como eu disse, as notícias não são auspiciosas”, reforçou o doutor, “no atual estágio em que se encontra a medicina, não há o que possa ser feito para...”
“Quanto tempo, doutor?”
“Impossível dizer com exatidão, diria que, no máximo, seis meses.”
“É razoável, a vida é assim mesmo, doutor, especialista em pregar peças e nos surpreender com inesperados presentes, é exatamente isso que a torna fascinante, e assim é até nos proporcionar o derradeiro presente: a morte”, ligeira pausa, “por força de ofício, estou familiarizado com a morte, tenho com ela uma relação amistosa.”
“Ah, sim, e qual é sua profissão?”
“Sou faxineiro, meu trabalho mais recente foi em um badanal numa balada badalada, só não foi em Badalona, imagine um trabalho em Badalona no badanal de uma balada badalada, seria uma aliteração, e um autêntico trava-língua.”
“Hein?!... O que é aliteração? E o que é Badalona?”
“Aliteração é a repetição de fonemas idênticos ou parecidos no início de várias palavras na mesma frase ou verso”, pausa, “e Badalona é uma cidade espanhola, da Catalunha, no subúrbio de Barcelona, residi em Badalona durante dois anos.”
“O senhor fala como um homem de vasta cultura, não pode ser um faxineiro.”
“O senhor está partindo do pressuposto de que faxineiros não são cultos, isso é preconceito, doutor, o fato é que, sou faxineiro, e também sou um entusiasta da leitura, atualmente estou lendo Zygmunt Bauman, aliás, uma leitura que recomendo.”
“Zygmunt Bauman, nome estranho para um livro!”
“Zygmunt Bauman não é o título de um livro, doutor, é o nome de um pensador polonês nascido em 1925, usei uma figura de linguagem chamada metonímia, que consiste no emprego de um termo por outro, havendo entre eles uma relação lógica de sentido, pode ser de causa e efeito, continente e conteúdo, parte e todo, autor e obra... No caso em questão, o nome do autor substitui a obra.”
“Ah, sei!”
“Quando digo que estou lendo Zygmunt Bauman, significa dizer que estou lendo as obras de Zygmunt Baumam, é interessante a maneira como Zygmunt trabalha o conceito de modernidade líquida e jardineiro e caçador. Recomendo o velho Bauman.”
“Seja franco, o senhor não é faxineiro, é?”
“Faxineiro é um jargão usado em meu ofício, sou assassino profissional, Sombra é meu codinome, faço serviço de limpeza, removo o lixo da sociedade.”
“O senhor não me mataria... Não tenho culpa se os exames...”
“Acalme-se, doutor, só elimino a escória, políticos do alto escalão, estupradores e afins, ah, a incompetência e a mentira também me incomodam muito...”
Na semana seguinte, a secretária de Benjamim telefonou para Euzébio e disse ter ocorrido um lamentável engano, uma troca nos exames, e que, na verdade, era outra pessoa e não Granada quem estava prestes a morrer.
Alguns dias depois, encontraram o doutor Benjamim morto em sua mansão.
“Não há a menor pista que possa nos levar ao autor do crime”, disse em entrevista o delegado encarregado do caso, “parece que a vítima foi executada por uma sombra.”