Indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro do ano de 2015, Leviatã (????????), sob direção de Andrey Zvyagintsev, conta a história dos acontecimentos dramáticos da vida de Kolya, alguns de cariz pessoal e amoroso, e outros que servem ao jurídico de nossa coluna. Resumidamente, a partir de um decreto de desapropriação por interesse público – construção de uma torre de telecomunicações – o prefeito Vadim requer as terras historicamente pertencentes à família de Kolya, pagando uma ninharia por elas.
Um advogado de Moscou, amigo de Kolya, de apelido Dima, judicializa a questão para impedir a expropriação administrativa, acreditando talvez em um adágio que já citamos em nossas colunas: “ainda há juízes em Berlim”, mas também sem sucesso perante o judiciário local corrompido.
Não bastasse, Kolya é preso por tentar dar parte à polícia sobre o prefeito, que apareceu em sua casa bêbado e o insultando. A queda de braços só se resolveu momentaneamente, quando Dima, em reunião particular com Vadim, apresenta documentos comprometedores sobre o que o prefeito já tinha feito em sua gestão; Kolya é solto na sequência.
Mas, em confissão com seu encorajador espiritual – bispo da igreja ortodoxa – Vadim é aconselhado a resolver seus problemas com força e que todo poder vem de Deus; o prefeito então espanca o advogado e o manda de volta a Moscou.
Homo homini lupus é a escrita original em latim da frase entoada por Thomas Hobbes em 1651 no seu livro homônimo Leviatã: “o homem é lobo do próprio homem”. Apesar de o filme remeter muitas vezes ao monstro bíblico e mitológico citado no Antigo Testamento (Livro de Jó), parece que se assiste mais razão ao filósofo inglês.
Na história do pensamento político, Hobbes surge como um dos precursores da teoria do Estado e dizia que, sendo os homens a priori maus, se não houvesse uma força superior (Estado) que lhes garantisse segurança, todos se matariam e assim defendia que cada um cedesse parte de sua liberdade, “contratualmente”, a uma pessoa, para que esta lhes garantisse segurança. Qualquer semelhança com a pandemia e a segurança sanitária atual, não é mera coincidência.
O poder executivo, do local ao federal, como vemos no filme, tem uma lógica diferente de atuação em relação ao poder judiciário: aquele é ativo e se há uma previsão legal de que pode atuar de determinada maneira, emite atos autoexecutórios; já este é dotado do princípio da inércia e só pode se mexer caso seja provocado por uma demanda judicial, amparada pelo direito de ação.
Traduzindo, dentro da linha hierárquica do sistema jurídico, os atos administrativos exarados pelo poder executivo (em sentido amplo: decretos, autos de infração, portarias, resoluções, alvarás, etc.) estão no nível mais baixo, que quer dizer que devem estar de acordo com seus patamares superiores (leis, normas supralegais, Constituição); o Poder Judiciário fica “à espreita” e sempre pode ser demandado para que avalie degraus inferiores em relação aos superiores, em resumo: legalidade e constitucionalidade dos decretos e atos administrativos ou constitucionalidade das leis.
Os leitores podem se perguntar, mas se os atos do poder executivo são autoaplicáveis, o que controla sua atuação? A resposta é, todo o ordenamento jurídico: leis, decretos, constituição, etc. Tecnicamente, todo ato administrativo deve obedecer a alguns requisitos: deve ser proferido por autoridade competente para tal; deve perseguir o interesse público; deve ter a forma, o motivo e o objeto corretos.
Onde Vadim pecou? A revelação vem ao final do filme: Kolya foi preso e sua casa foi destruída, no lugar foi construída uma igreja nova, para o bispo amigo de Vadim, deixando de lado a finalidade pública de todo ato administrativo. A ironia do sermão final, que prega a necessidade da verdade divina, superior à dos homens, infelizmente acaba sendo um sermão para o mundo todo. Fiquemos atentos aos lobos do próprio homem.