As cidades brasileiras, em sua maioria, cresceram em um processo de adaptação aos automóveis, com exceção de Brasília, que já foi construída inteirinha para servir os carros. Lá a situação ganha contornos de tragicomédia, porque além de Brasília não ter sido planejada para o transporte público, o tombamento da cidade impede as adaptações necessárias para a implantação de corredores de ônibus, ciclovias e outras formas de transporte que não sejam os carros. Enquanto isso, a cidade,ou melhor, os cidadãos padecem. Os que têm carro por conta dos congestionamentos. Os que não têm, por conta das condições precárias de transporte coletivo.
São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Manaus e várias outras cidades que se
desenvolveram durante o século XX foram sendo adaptadas ao uso dos carros. Mesmo com alguns políticos fazendo o discurso do transporte coletivo, os investimentos prioritários foram destinados à construção de avenidas, viadutos e estradas. O motivo da esquizofrenia, onde os políticos falam em transporte público e investem em infra- estrutura para automóveis, pessoas pregam a necessidade de redução do uso dos carros, mas não vão sem ele nem à esquina, é o fato de que o automóvel, ao contrário do que deveria ser, não é uma máquina de mobilidade, uma extensão das pernas, mas sim uma extensão do ego das pessoas.
Um automóvel deveria ser uma extensão das pernas, uma maneira de ir e vir de forma rápida, eficiente, econômica e com qualidade. No entanto, esta não é a realidade do mercado. Ter um carro significa mostrar poder, capacidade de consumo e coisas que nada tem a ver com ir e vir. Uma vez, em uma conversa com a psicóloga Ana Verônica Mautner, ela se saiu com essa: “Tem homem que precisa de um motor para carregar seu próprio pinto. A potência é da máquina, e não dele”. Do lado feminino já se criou, inclusive, a pouco honrada denominação de “Maria Gasolina”, que define as mulheres que colocam as qualidades do carro acima das qualidades do motorista.
Recentemente a revista Exame deu uma capa com o título “Em busca do carro verde”. Dentro estavam as experiências de se suprir as demandas do ego com veículos que consomem combustíveis alternativos. Há, inclusive, um Hummer, aquele enorme jipe militar que é o sonho de consumo de muita gente, movido a biocombustível. Outros eram esportivos e carros de luxo com motores elétricos ou a célula combustível. Grandes e pesados carrões que precisam de “muita potência” para carregar o próprio peso e o ego de seus proprietários. Pouco se pensa em redução de peso e eficiência energética.
O carro do futuro poderá ser, inclusive, um carro movido a gasolina. A diferença é que, ao invés de fazer 10 quilômetros com a energia armazenada em um litro de
combustível, poderá fazer 50 ou mais quilômetros com ela. Mais até do que faz uma motocicleta de baixa cilindrada hoje. Quando o ex-presidente Itamar Franco lançou o desafio do carro popular, a Volkswagen tentou ridicularizar a ideia, com o relançamento de um projeto dos anos 30, o Fusca. A Fiat deu um passo adiante e lançou um novo conceito de veículo, o Uno Mille. Hoje praticamente todas as
montadoras têm carros de mil cilindradas. Veículos que caminham para a concepção de um modelo de transporte individual menos impactante tanto sob o ponto de vista do consumo de combustível, como do uso do espaço urbano.
Mas só ter carros mil resolve? Claro que não. As montadoras precisam continuar
investindo em soluções de eficiência energética. A criação do sistema flex, que
permite a queima de álcool e gasolina foi um passo adiante, mas ainda há muito o que se fazer em termos de redução de peso dos veículos, aumento de autonomia por litros de combustível, segurança ativa e passiva etc.
Porém sem uma mudança drástica na forma de uso e na visão do que é um automóvel, muito pouco vai mudar. Um carro deve ser visto como uma extensão das pernas, como mais um modo de transporte à disposição das pessoas, e não como o único. Uma pessoa ou uma família pode ter um carro, mas usá-lo de forma integrada com o transporte público, com a bicicleta e com trajetos a pé. Um carro deve ser visto como um instrumento de conforto que pode nos levar a locais isolados, onde o transporte público não chega, em horários onde a cidade está com menos movimento e coisas assim.
No entanto, enquanto o carro for extensão do ego, e não das pernas, não haverá
alternativas, porque políticos continuarão fazendo a demagogia do discurso pelo
público e o investimento pelo individual, e as pessoas vão continuar a usar desculpas para não utilizar o transporte público.
As cidades brasileiras precisam mudar, e rápido, para oferecer conforto a quem usa transporte coletivo. É preciso ter circulares nos bairros, interligando estações de trens e metrôs com sua própria vizinhança e não apenas com linhas de longa distância.
O carro do futuro não terá, necessariamente, de ser movido a eletricidade ou a
biocombustíveis. Mas deverá ser um veículo de transporte com alta eficiência
energética, segurança ativa e passiva, além de trabalhado no conceito de ser uma
extensão das pernas. As montadoras precisam direcionar parte de seus esforços para a concepção de veículos que sejam apenas um meio de transporte eficiente.
Não adianta apenas falar na necessidade de mais e melhor transporte coletivo. É
preciso também construir automóveis mais modernos e eficientes, menos pesados e ostensivos, menores e mais seguros. O ego, este deve encontrar outras maneiras de se manifestar.
*Dal Marcondes é jornalista, diretor da Envolverde. Desde 1998 dedica-se a cobertura de temas relacionados ao meio ambiente, educação, desenvolvimento sustentável e responsabilidade socioambiental empresarial. Recebeu por duas vezes o Prêmio Ethos de Jornalismo e é reconhecido como um "Jornalista Amigo da Infância" pela agência ANDI.