A busca dos povos por meios, recursos e insumos para sua sobrevivência não tem limites. O mais recente alvo é, quem diria, o jumento, nosso jegue, também conhecido como jerico. Isso mesmo, esse asno, cujos primeiros passos como animal de carga e montaria, nos campos do Baixo Egito, datam de 5.000 a. C., celebrado em canto e verso por Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, como “o maior desenvolvimentista do sertão”, é cobiçado pela maior população do planeta, que aguarda o momento de degustar as iguarias que dele se produzirão, com a importação de 300 mil jumentos por ano do Nordeste brasileiro (Estado, 13/3).
A faca chinesa passa ao largo da significação do asinino na cultura nordestina. Afinal, a China abate 1,5 milhão de burros por ano, que passam por processo envolvendo tecnologia de ponta. Para os chineses o que faz sentido é proteína animal, sendo incompreensível o lero-lero que nossos trovadores começam a expressar no resgate de poéticos relatos de quem “arrastou lenha, madeira, pedra, cal, cimento, tijolo, telha, fez açude, estrada de rodagem, carregou água, fez a feira e serviu de montaria”. O “tratamento digno” que sites, protetores de animais e artistas exigem para o “jumento, nosso irmão”, só tem lógica para os estômagos asiáticos se ele for transformado em tira-gosto.
Por trás da estratégia de transformar o jumento em atrativa cadeia econômica para os Estados nordestinos há uma engrenagem que conecta os fios da modernidade com os braços do Estado social. Tradução: a motocicleta expulsa o jegue dos campos. O flagrante: motos cercando gado, buscando água, transportando materiais e pessoas. Já a compra do veículo se deve ao Bolsa-Família e às facilidades de crédito.
Depois de perder tarefas tradicionais, os animais, abandonados por proprietários, saem das fazendas para circular em estradas e ruas das cidades, sinalizando o fim de um tempo. A troca do jegue pela moto diz muito sobre nosso estágio civilizatório. Traduz, primeiro, a chegada do progresso, que os políticos saúdam com a peroração na inauguração do abastecimento de água nas cidades: “Com essas torneiras aposentamos o jumento e as ancoretas”. Sinaliza, também, as ineficientes políticas para fixar o homem no campo. A população brasileira, vale lembrar, deixou de ser predominantemente rural no período 1960-1970.
A componente econômica é a matriz que conduz os interesses. Os Estados do Nordeste enxergam na possibilidade de exportar a commodity (tenho dúvidas quanto ao emprego desse termo para designar um jegue) como mais um suporte de sua economia. A fome é uma ameaça que paira sobre o 1,3 bilhão de chineses e os governos nordestinos carecem de dinheiro para ampliar suas estruturas. Assim, qualquer produto que atraia os orientais pode ser um bom negócio. Vista sob o prisma econômico, a alternativa parece razoável. Importa, porém, examinar outras abordagens subjacentes à questão.
É inescapável a observação de que a mudança de padrões de vida no Nordeste, a partir da substituição do jerico pela moto, ocorre no fluxo de velhos e novos vícios. Tendência à acomodação, ampliação do tempo de ócio, recusa a trabalhos manuais (coleta de lixo nas ruas, por exemplo) e acidentes envolvendo motociclistas são fenômenos urbanos que se expandem. Milhares de pessoas deixam pequenos empregos para ganhar o Bolsa-Família. Muitos recusam o trabalho formal com carteira assinada por temerem perder o benefício, enquanto casais programam ter filhos de olho na bolsa-maternidade.
Extravagâncias multiplicam-se. Cena agressiva é moto correndo em torno do rebanho bovino para conduzi-lo ao curral. Revela a nova estética rural, tão diferente quanto dissonante dos tempos das bucólicas fazendas. O que dizem os veterinários sobre as novas maneiras de cuidar do gado? E o que dizem os ecologistas e gestores públicos sobre a barbárie que se instala nos espaços urbanos e rurais, retratada por uma teia de elementos desconjuntados, percepções erráticas sobre hábitats, arquiteturas que ferem o meio, imitações grotescas, eventos deslocados das culturas locais? As comunidades acabam “comprando” os pacotes embalados no celofane da modernização. O fato é que as cidades se tornam barulhentas; o povo, mais leniente; os campos, mais vazios; os acidentes, mais constantes; as rotinas, artificiais; e os habitantes, menos espontâneos. Retrato da felicidade empacotada.
Avanços que poderiam ser creditados às novas tecnologias acabam ofuscados por um modus vivendi tomado pelo estresse. Até a interlocução pessoal é mecanizada. A desnaturação cultural - pela absorção mimética de padrões da moda, comportamentos, atitudes, estilo de vida - impacta catastroficamente regiões de fortes tradições culturais. É a força (e a agressão) do progresso. Como cantavam Sá, Rodrix e Guarabira em Sobradinho, “o homem chega, já desfaz a natureza, tira gente, põe represa, diz que tudo vai mudar... E passo a passo vai cumprindo a profecia do beato que dizia que o sertão ia alagar”. O preço da modernidade acaba subtraindo a conta de valores e traços de belas tradições. Por todo lado borrões da contemporaneidade deixam registro. Ali se vê o artista de rua imitando atores de mídias massivas, acolá indumentárias espelham a moda das novelas, a poesia popular é uma lista de tatibitates, serenatas são baladas que ecoam as “delícias” de ídolos passageiros, danças e ritos não passam de enfeites de carnaval. Sobra a gastronomia. Essa, sim, resiste à modernidade.
Não é de admirar que o jegue abra zurros lamurientos na paisagem nordestina. Sai dos campos abertos, enxotado por um veículo barulhento, para entrar nos currais de procriação e ajudar a economia. O poeta José Pedrosa tem o verso: “Da mesma forma que a máquina tira do homem o ganha-pão, essa tal de motocicleta é um bicho sem coração, porque traz desassossego, tirando todo emprego do jumento, nosso irmão”.
*Gaudêncio Torquato é jornalista e consultor de comunicação organizacional