Há pouca informação e também pouca circulação de poesia francesa mais recente no Brasil. Já contamos, há bastante tempo, com um acervo significativo de boas traduções de poetas célebres e fundamentais, como Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, Mallarmé, Apollinaire, Paul Éluard e Valéry. Já existem também alguns livros e conjuntos de poemas de Francis Ponge, Saint-John Perse e Pierre Reverdy vertidos para o português. Um dos responsáveis pela tradução e divulgação de obras de autores franceses entre nós – tanto as consagradas, quanto as contemporâneas - tem sido o poeta mineiro Júlio Castañon Guimarães, fino intelectual, conhecedor profundo do idioma francês e da cultura do país de Proust. Devemos a Castañon versões e recriações de versos de Mallarmé e de Valéry, de Ponge e de Reverdy. Recentemente, ele nos brindou com um pequeno, mas expressivo, conjunto de textos de Jean-Pierre Lemaire (Poemas – SP, Lumme Editor, 2010); nascido em 1948, Lemaire é um dos importantes poetas contemporâneos franceses, pouquíssimo ou nada conhecido por aqui.
Agora, Castañon nos apresenta parte da obra de Antoine Emaz; mais jovem que Lemaire, Emaz nasceu em Paris no ano de 1955. É autor, entre outros, de Poèmes en miettes (1986), Boue (1997), Peau (2008) e Cambouis (2009). O volume que acaba de sair pela Editora 7Letras tem o título de Lama, pele e traz dez poemas dos livros Boue e Peau, selecionados e traduzidos por Castañon. Acompanham os poemas trechos extraídos do volume Lichen, lichen, de Emaz – prosa com conceitos, reflexões e idéias do autor francês sobre seu trabalho e sobre a poesia em geral. No final do livro há também um esclarecedor e informativo posfácio do tradutor (“Notas sobre uma escrita em cinza”), onde este assinala que Emaz “é um dos nomes mais significativos da poesia contemporânea francesa, autor de uma obra extensa e, sobretudo, de um dos poucos trabalhos que se podem considerar como constituindo de fato uma experiência poética renovadora”.
Curioso é que grande parte da poesia de Emaz, ainda segundo Castañon, saiu por pequenas editoras, muitas vezes através de plaquetes em parceria com artistas plásticos. A indiferença do poeta francês pela grande edição “tem a ver com sua percepção de que é a própria recepção da poesia que permanece indiferente à questão e, sobretudo, de que as grandes editoras tratam de modo indiferente a poesia”.
A poesia de Emaz é escrita com palavras simples e diretas, submetidas a um trabalho extremo de depuração. Segundo o autor, “o que é preciso é que cada palavra pese um peso adequado no poema”. O processo de composição é exato, resultando em poemas concisos, mas intensos, com sutilezas e nuances no seu delicado desenho na página branca. Há pausas e cortes; o sentido parece interromper-se ou duplicar-se; uma cadência poética, mais ou menos constante, é, subitamente, desestabilizada num giro sintático: palavras e frases se soltam aqui e ali – resta da leitura certa sensação de incompletude, ou mesmo de alguma “falta”. Um exemplo do processo poético de Emaz:
“escada abrupta e escorregadia/para uma angra/um cesto sem rede/range/a gente desce//pequena praia cinza ao vento/de frente//nada a dizer//o mar não tem olhos” (“Só”, do livro Pele).
Ou ainda este trecho do poema “XV”, do livro Lama:
“ondas árvores//de longe ainda tem//verde//o olho vasculha//na cor//queria fixar um lugar uma palavra//estaca//Erro.//As palavras no olho arranham, riscam”.
A tradução de Castañon tem não só mérito de revelar e de apresentar para o leitor brasileiro um criativo autor contemporâneo francês, como também o de enfrentar com êxito, nas suas soluções, a “dificuldade da simplicidade” dessa poesia, em vários momentos ambígua em sua descontinuidade verbal (leiam-se suas considerações, no posfácio, sobre o uso peculiar do pronome on por Emaz).
Trata-se de uma poesia extraída do banal; mas nada banal ao reconfigurar pela escrita esse mesmo banal, como reconhece e afirma o próprio Emaz: “Perfuro no habitual, no localizável, no já visto, em suma no comum, até que ele devolva uma forma de profundidade. Cavar no clichê como em um dente, até que isso faça doer e que a experiência se torne novamente sensível”. A publicação desses textos de Antoine Emaz é, sem dúvida, uma importante contribuição para o melhor conhecimento da atual poesia francesa, quase ignorada entre nós.
*Carlos Ávila é poeta e jornalista, autor, entre outros, de Bissexto sentido e Poesia pensada