A recente decisão do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, a respeito das denominadas “cotas raciais” de acesso ao ensino universitário, ensejou reações as mais diversas. Como é natural em tema de tão profundas implicações, houve quem elogiasse, quem reclamasse da tardança e quem censurasse duramente o conteúdo decisório e a interpretação constitucional. Preocupam os argumentos contrários ao reconhecimento de uma política pública de ação afirmativa, destinada a resgatar da exclusão social fração tão significativa da população brasileira, hoje dita afrodescendente, conforme o linguajar politicamente correto estabelecido.
Um argumento difundido em meio a profissionais do direito tem sido o de que a política de cotas violaria o inciso IV, do art. 3º, da Constituição de 1988, que afirma ser objetivo fundamental da República Federativa do Brasil: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Invocando o dispositivo, tornou-se comum ouvir que a ação afirmativa estaria a criar fracassos na universidade, aquinhoando os menos preparados e sacrificando os interesses nacionais ligados à melhoria do ensino e à formação acadêmica de excelência.
Breve consulta à história do Brasil, com três séculos de intenso tráfico de escravos africanos, nos períodos colonial e imperial, até a abolição, em 1888, é mais que suficiente para a afirmação de um débito irreparável da nação. Mas vivemos em ambiente republicano há mais de cento e vinte anos, o que torna necessário atualizar conhecimentos, de modo a saber se o advento da República teve o efeito de igualar materialmente os brasileiros de todas as origens, raças e cores, muito especialmente aqueles cuja ancestralidade próxima se encontra entre os negros africanos escravizados.
Como a situação do negro e do mulato se coloca em face do já transcrito inciso IV, do art. 3º, da Constituição de 1988? O dispositivo constitucional traduz um comando nitidamente político, orientador do Estado e da Nação, para superação dos males decorrentes de preconceitos e discriminações que desfavoreçam a inclusão social. Isto significa uma opção política claramente voltada ao reconhecimento das minorias, em processo de autocrítica, como passo necessário à construção de um projeto válido de democracia. Os preconceitos e as discriminações censurados são aqueles conducentes a situações de subcidadania ou de franca denegação de cidadania, autorizando, ou mesmo exigindo, a concepção de políticas voltadas à inclusão e à participação no destino nacional. Do ponto de vista político, apesar da grandeza numérica no cotejo com o total da população brasileira, os afrodescendentes são minoria, já que seu acesso aos benefícios e favores do estado atual do desenvolvimento está comprovadamente abaixo do que ocorre com brasileiros de outras origens.
*Bruno Terra Dias é presidente da Associação dos Magistrados Mineiros