Existe uma preocupação, e podemos dizer, exagerada, sobre o nosso suposto despreparo, em termos linguísticos, para lidar com os turistas estrangeiros que visitarão o país para a Copa, em 2014. Como consequência desse suposto despreparo teríamos, então, uma sucessão de confusões e mal entendidos que colocariam em risco a qualidade da realização do evento.
Essa preocupação, antes de apostar no fracasso da comunicação dos brasileiros, supõe a inabilidade de um estrangeiro de se comunicar para além da sua língua materna. Esse equívoco comum, e também primário, reduz a língua à fala, esquecendo que ela é linguagem e, como tal, é muito mais ampla e está presente, também, no silêncio, no que não se fala e no que não se escreve.
Vejamos: gestos, sentimentos, quadros, melodias, olhares furiosos, notas de dinheiro, bilhetes de metrô, placas de trânsito, sorrisos, propagandas de cuecas, fotos de sanduíches suculentos, faixas de pedestre, linha de trem, plataforma de ônibus, poste, semáforo, o uniforme da polícia, o grafite nos muros, a propaganda política, as ofertas nos preços, os resmungos, xingamentos... táxi! O que é linguagem, ou melhor, o alcance dela, não cabe aqui nem em parte alguma, e a produção artística de milênios é testemunha maior do que qualquer argumento contrário.
Portanto, a língua que falamos e falaremos durante a Copa deve ser feita de três pequenas considerações, ainda que possam parecer óbvias e, por isso mesmo, frequentemente desprezadas:
A primeira delas é sobre quem viaja e o seu lugar de destino. Qualquer um que saia de casa o faz minimamente precavido, e quando esse qualquer um é um turista ou um viajante, trata-se de alguém munido de informações básicas e úteis de locomoção, hospedagem, alimentação e costumes locais. Do outro lado da linha desse viajante estão os que o recebem, o chamado povo local, os nativos, nós mesmos, já que o destino desse turista, nesse caso, é o Brasil. Essa é a primeira sorte do estrangeiro recém-chegado: encontrar brasileiros. A recepção brasileira tem fama internacional e não à toa. A vocação brasileira de receber bem é uma placa imaterial na qual todo estrangeiro pode ler: você é bem-vindo.
A segunda consideração trata da configuração do lugar, que são muitas, mas fiquemos com a mais evidente: a presença múltipla de estrangeiros múltiplos. As diferenças, em qualquer lugar do mundo, constroem uma unidade onde a coexistência é exercida, parcialmente em alguns casos, plenamente em outros. Assim, suas línguas criam códigos e senhas que contornam a língua anfitriã. É a mistura dessas línguas que será falada e ouvida no Brasil, no ano que vem ela será a língua oficial do evento com seus símbolos, cores, gestos, entonações, intenções e silêncios, tudo traduzido em favores mútuos e na troca de informações.
Em terceiro lugar, precisamos ponderar sobre a língua diante do evento em si. O que é a Copa do Mundo? Subtraindo as mazelas políticas e econômicas, ela é uma festa. E como a língua se comporta diante de uma festa? Ou melhor, como é a nossa fala numa festa? Presume-se, ou deseja-se, que seja a mais descontraída possível, pois se vamos a uma festa dispostos a chatear alguém com assuntos intermináveis e com pretensões completamente fora de lugar, parabéns: somos o porre da festa. Os dois lados encontrarão um entendimento satisfatório, seja o brasileiro que não domina uma língua estrangeira, seja o estrangeiro que não sabe nada além do Obrigado, e não precisa saber porque ele está em férias, se divertindo, e não numa viagem de negócios ou de estudos nas quais, aí sim, exige-se, e com razão, o conhecimento de uma língua estrangeira.
A fala pode omitir, tem recursos para isso; uma festa, ao contrário, escancara, e mostra o que toda língua compreende: nossa nudez de gala. Na Copa, falaremos uma língua de festa, cheia de rumores, mas compreensível a ponto de saciar todas as necessidades, extraindo os entendimentos enviesados e dedutivos com os quais se alimenta, quase sempre com sucesso, a ousadia inominável de pensar que entendemos o outro com o conhecimento mínimo de nós mesmos. Nossa nudez de gala. Ave, palavra!
Ivan Fornerón é doutorando em Literatura Espanhola pela USP e colaborador da Expressão Consultoria