Há regras de convivência, por vezes tomadas de empréstimo pelo legislador ou pelo moralista para qualificar deveres, de cuja existência mal tomamos conhecimento nas relações sociais cotidianas. Das mais difundidas, pouco compreendidas e praticadas, são as relativas à denominada urbanidade. Própria da vida citadina e dos compromissos que implica, a urbanidade refere-se à qualidade do meio social em acolher, hospedar com amabilidade o cidadão, sem a aridez dos agrupamentos que na multidão nos isolam, afastando as barreiras que o excessivo individualismo, tão característico do nosso tempo, impõe em subversão à natureza gregária da humanidade.
Se considerada no âmbito das relações sociais, a urbanidade poderá ser entendida como qualidade, não da cidade, mas de quem a habita, traço de caráter, lhaneza e educação no trato com o semelhante. Entenda-se por semelhante não apenas aquele com quem se compartilha alguma afinidade profissional, amadora ou intelectual, mas todos os demais, habitantes ou transeuntes, por respeito puro e simples à condição humana.
A urbanidade, como característica social, decorre da estruturação da cidade ou, bem diversamente, das características da cidade, sua face mais ou menos acolhedora, o caráter médio dos que nela habitam ou dela fazem um centro de interesse? A leitura da cidade deve incluir apreciação dos equipamentos urbanos (no sentido da NBR 9284) como meio de conhecer suas qualidades de abrigamento da pessoa e de disponibilização de recursos para realização do potencial de cidadania de cada um. Por outro giro, um diagnóstico do modo de vida em comunidade propiciará aquilatar o quanto a disposição de equipamentos urbanos atende a cidadania e a existência de grupos atuantes e participantes na definição de políticas que atendam os interesses da coletividade.
Na perspectiva da cidade, como na do cidadão, a urbanidade sempre terá em conta o interesse coletivo aplicado a situações pertinentes ao bem público, mesmo nos momentos de aferição de interesses de ordem privada. Afinal, pode-se considerar como sendo interesse coletivo que a cidade, a comunidade e o indivíduo desenvolvam um caráter dotado de polidez, civilidade e educação.
Atributo diverso da urbanidade é a cordialidade. A expressão “homem cordial”, cunhada pelo poeta, cronista, contista, romancista e diplomata Ribeiro Couto (Rui Esteves Ribeiro de Almeida Couto) e notabilizada por Sérgio Buarque de Holanda, assumiu para o vulgo, na descrição do caráter brasileiro, uma função bastante diversa do que sugere seu significado próprio. Aludindo à fusão de raças (não em sentido biológico, que seria absolutamente impróprio, mas em sentido sociológico) nas Américas, do que resultaria o surgimento do “homem cordial” como nova raça, Ribeiro Couto se referia àquele que age pelo impulso da emoção, do coração (cordis), o que se poderia assimilar como aventureiro, confiante em talentos próprios, inatos ou adquiridos, para uma sociabilidade superficial.
Na composição social do “homem cordial” não se encontra a racionalidade ditada por princípios sedimentados na consciência, individual ou coletiva, não há bondade, autêntica afetividade ou sinceridade. Uma liturgia da polidez, da aparência, uma generosidade hoteleira de quem recebe na quase certeza de não reencontrar, marcam também o caráter cordial da pessoa, da comunidade ou do povo. Isso não é traduzível como civilidade ou urbanidade. Tampouco as distinções, ofertadas de mancheia, são desinteressadas ou reconhecimento de mérito verdadeiro.
O “homem cordial” delibera movido pela emoção, expressando ética própria, voltada à fácil obtenção de intimidade indevida, na expectativa de vantagens, imediatas ou futuras. Raízes do Brasil, Formação do Brasil Contemporâneo e Coronelismo, Enxada e Voto, obras clássicas de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Vítor Nunes Leal, estabelecendo o pensamento social brasileiro das décadas de 1930 e 1940, demonstram o patrimonialismo, o patriarcalismo e a forte influência da vida social rural, nos ambientes colonial, imperial e republicano, em perspectiva cultural ibérica, na constituição do que se poderia considerar como caráter nacional brasileiro. Algo bastante distinto daquilo que ousamos dizer ou aceitar como traço predominante do espírito nacional, que pode ser associado ao comportamento público das mais altas autoridades brasileiras em toda a história, inclusive no presente.
A apropriação, pelo legislador como pelo moralista, da urbanidade como princípio de conduta do servidor público, em todos os escalões e nas diversas esferas de Poder por vezes choca-se com a cordialidade distintiva da latinidade. Não são poucos os registros, de prefeitos a governadores e presidentes da República, de vereadores a deputados estaduais e congressistas, de juízes a desembargadores e ministros, e de membros de instituições autônomas a revelar, pelo comportamento, sobreposição de cordialidade à esperada urbanidade, não distinguindo o dever, moral ou legal, do trato vicioso e internalizado que corre em suas veias como memória ancestral, que busca seiva própria no período colonial.
A evolução, da cordialidade para a urbanidade, não se dará aos saltos. Práticas e hábitos arraigados somente serão superados ao custo da redefinição de papéis e de condutas ao longo de gerações. Será necessária a inauguração de um novo período que supere o que já participa do DNA político brasileiro. Mas a consciência das dificuldades não exime nossas autoridades do esforço de ser exemplo positivo para a Nação. Afinal, o homem cordial nunca será propriamente urbano, não assumirá, quando investido nos cargos mais elevados da República, a necessária racionalidade ditada por princípios de interesse público e satisfação das necessidades coletivas. Sem essa transformação, haveremos de nos contentar com a falsa civilidade do aventureiro e com o lugar de sociedade periférica no contexto internacional.
*Bruno Terra Dias é ex-presidente da Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis)