O Brasil vive uma época de transições, que se inaugurou em 1979, com a Lei da Anistia, prosseguiu com a eleição dos Governadores, em 1982, a vitória de Tancredo e a tragédia de sua morte, em 1985, a esperança cidadã depositada na Constituição de 1988 e a consolidação das instituições democráticas nestes quase 25 anos do célebre 5 de outubro. Superada a crise da deposição de um presidente, passamos pelo teste de modernização administrativa e econômica, concluímos um processo de inclusão social jamais registrado na história republicana.
Na quadra atual, novos desafios se apresentam, com o povo brasileiro exigindo, cada vez mais, a materialização dos direitos constitucionais. Um dos desafios propostos é o da votação da PEC 37, que pretende determinar a exclusividade da função investigatória, por regra constitucional, a favor da Polícia Federal e da Polícia Civil. A aparência singela da proposta esconde dificuldades que escapam ao senso comum, o que dificulta a formação de um juízo equilibrado por representantes do povo e, mesmo, por especialistas.
É verdade que, no pano de fundo das discussões, há irritações decorrentes do fato de que, ao contrário das polícias, as investigações do Ministério Público, assim como da Receita Federal, do Coaf e de outras instituições, em âmbito mais restrito, não estão regulamentadas em lei. Uma questão dessa natureza se resolveria com relativa facilidade, sem os transtornos da tramitação legislativa de uma proposta de emenda constitucional, bastando inserir, no Código de Processo Penal, um dispositivo que determine que toda investigação criminal, mesmo que efetivada por instituição diversa dos órgãos constitucionalmente encarregados de atribuições típicas de polícia judiciária, fica submetida às regras próprias do inquérito policial (inclusive quanto à ciência do investigado e acesso dos autos pelo advogado), não podendo o órgão oficiante subscrever a denúncia. Vale dizer, o promotor ou procurador de justiça designado para determinada investigação criminal teria seu trabalho submetido a outro órgão do MP, que poderia requerer diligências, pedir arquivamento ou ofertar denúncia, evitando todos os males do passionalismo do órgão investigante que, atualmente, em frequentes casos, subscreve a denúncia. O mesmo raciocínio valeria para as investigações relativas a ações civis públicas, pois é comum que as violações ensejadoras desse tipo de investigação sirvam de lastro à propositura de ações criminais.
Em seus efeitos, a denominada PEC 37 tornará improvável a continuidade de avanços políticos na seara dos mecanismos estatais de Justiça, na medida em que subtrairá, ao MP e a outros órgãos, cada qual no estrito âmbito de suas atribuições constitucionais, a possibilidade de encetar investigações criminais diretas. Criada restará uma nova burocracia, a estorvar o cumprimento do mais comezinho dever estatal, que é fazer Justiça ao cidadão. É de imaginar como situações limítrofes, de larga ocorrência em inquéritos civis, para apuração de improbidades administrativas, que normalmente confinam com crimes contra a administração pública, ou em cruzamento de dados da Receita Federal, que pode revelar crimes fiscais, ficarão prejudicadas se, a cada momento, houver o órgão investigador de se reportar à polícia judiciária e suspender seus trabalhos por haver transposto o limite entre a investigação administrativa e a criminal.
Na perspectiva institucional, a intenção reformadora implicaria em retrocesso aos termos inscritos na Constituição de 1967, quando não se admitiam investigações contra atos praticados em nome ou por ordem do governo. A pluralidade dos órgãos de investigação foi uma conquista social e política, que propiciou o desvendamento de situações que em outras épocas seriam cobertas pelo segredo tumular das conveniências de agentes políticos não afeitos aos princípios republicanos e democráticos.
Os tempos atuais exigem transparência administrativa e publicização de informações, desconcentração de poderes e franquias às liberdades cidadãs. Como compatibilizar as expressões desses princípios, que formam o espírito público das democracias voltadas ao desenvolvimento de sociedades livres, justas e solidárias, com a subtração de meios às instituições encarregadas de zelar pela probidade administrativa, pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais indisponíveis?
Regulamentação e controle social, marcas do Estado moderno e eficiente, são mais recomendáveis que a negação pura e simples de prerrogativas investigatórias, ao MP e a outros órgãos, nos âmbitos de suas atribuições constitucionais. Retroceder ou avançar, eis o dilema da sociedade brasileira posto à decisão dos nossos congressistas.
*Bruno Terra Dias é ex-presidente da Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis)