*Euro Bento Maciel Filho é advogado criminalista, mestre em Direto Penal pela PUC-SP e sócio do escritório Euro Filho Advogados Associados – eurofilho@eurofilho.adv.br
No país do “jeitinho”, do “esquema”, da corrupção e de tantas outras condutas antiéticas, a delação premiada, de uns tempos para cá, vem ganhando espaço e força nas investigações policiais.
Basicamente, o instituto da delação premiada nada mais é do que a antiga e conhecida alcaguetagem, vale dizer, o ato de delatar, entregar, dedurar alguém que tenha cometido um ato ilícito qualquer. Na prática, tudo se dá mediante um “acordo” entre o “réu colaborador” e o Magistrado, que pode ser feito tanto na fase investigativa (mais comum) quanto na processual.
No fundo, é uma prática tão imoral quanto a prática do crime em si, porém, com uma grande e brutal diferença: se, de um lado, o Direito pune o crime e, por corolário, o criminoso, de outro, estimula e concede benefícios ao “dedo-duro”.
De fato, sob o aspecto ético, aquele que delata seus antigos comparsas, com quem praticou os mesmos crimes, não pode ser visto como alguém moralmente correto. Afinal, ao delatar os demais corréus, o alcaguete não só reconhece os seus crimes, como ainda entrega os atos ilícitos dos demais.
Nesse ponto, é relevante esclarecer que confissão e delação premiada não se confundem, posto que, enquanto a confissão refere-se à autoincriminção (ou seja, o cidadão confessa o(s) seu(s) próprio(s) crime(s)), na delação, o “delator”, além de reconhecer os seus delitos, também imputa a terceiros a prática de crimes.
Porém, em razão do grande desenvolvimento das organizações criminosas, cada vez melhor estruturadas e aparelhadas, a delação premiada passou a ser uma importante arma do Estado no combate ao crime organizado. Como exemplo, convém recordar que boa parte dos esquemas e negócios da máfia italiana nos Estados Unidos e na própria Itália foram descobertos e, ao depois, aniquilados em razão da “delação premiada” de inúmeros mafiosos.
Realmente, diante da deliberada conduta do delator, que deseja celebrar o “acordo” para ter uma benesse ao final do processo, o Estado, que normalmente seria incapaz de desbaratar os crimes e a quadrilha que lhe são entregues “de bandeja” pelo réu colaborador, tem suas investigações extremamente facilitadas.
Assim, porque realmente torna mais fácil a apuração dos fatos, a “delação premiada”, de uso cada vez mais corriqueiro pelo mundo afora, tem sido instrumento importante para a produção de provas no combate ao crime organizado. Nesse contexto, a questão ética do delator, positivamente, passou para um segundo plano.
No Direito Penal Pátrio, o instituto da delação premiada surgiu com a Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos). De acordo com o parágrafo único, do artigo 8º daquela Lei, a delação premiada serviria, apenas, como um mero redutor da pena para o delator. Ou seja, originariamente, para o legislador pátrio, aquele que delatasse o bando ou a quadrilha de que fizesse parte responderia ao processo junto com os “delatados”, poderia ficar preso juntamente com os comparsas e, ao final da ação penal, desde que a delação tivesse sido importante para o desmantelamento do grupo, teria direito a uma diminuição na pena que poderia variar entre 1/3 e 2/3. E só!
É conveniente deixar claro que a validação da “delação premiada” como causa de diminuição da pena depende, sempre, da análise das informações prestadas pelo delator, a ser feita pelo Juiz da causa.
Posteriormente, outras leis passaram a prever o instituto da delação premiada no Direito Penal Brasileiro, contudo, o instituto sempre foi visto como mera causa de redução da pena. Foi somente com a Lei 9.807/99 (que regula o Sistema de Proteção às Vítimas e Testemunhas), ou seja, após quase uma década, que o instituto da delação premiada sofreu grandes alterações. E, a partir dela, o delator, agora então chamado de “réu colaborador”, passou a ter direito não só à diminuição da pena, mas também à proteção do Estado e a benefícios legais mais elásticos.
De fato, a partir da Lei 9.807/99, a “delação premiada” passou a servir também para excluir a punibilidade do delator, já que a lei faculta ao Juiz conceder o perdão judicial nesses casos. O benefício a ser alcançado pelo delator ficará a critério do Magistrado, pois é dele a incumbência de analisar e ponderar a relevância das informações prestadas pelo “réu colaborador”. Assim, quanto mais informações forem dadas pelo delator ou, quanto mais importantes forem as informações prestadas para desmantelar uma determinada quadrilha, maior será o benefício concedido.
Vale ressaltar, contudo, que a hipótese do perdão judicial só é cabível se o delator for primário e, ainda, se a “natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso” não se mostrarem incompatíveis com o benefício.
Em outros termos, a concessão do perdão judicial ao delator é medida de exceção, que está condicionada ao cumprimento de diversos requisitos. Nota-se, assim, que a “delação premiada”, mesmo na Lei 9.807/99, continua servindo ao delator como causa de diminuição da pena. E é justamente nesse ponto que se faz a grande crítica ao instituto.
O “réu colaborador” precisa ter em mente, antes de fazer o “acordo”, que ele é tão réu quanto os comparas que entregou. Sendo assim, partindo do princípio de que o alcaguete desperta a ira naqueles que foram “delatados”, é evidente que o delator deve se preparar para o mundo que o espera do lado de fora dos gabinetes onde são tomadas as suas declarações. Se ele for preso, o alcaguete, invariavelmente, já entra na cadeia sentenciado à morte. Se, porém, ao delator for permitido responder ao processo em liberdade, caberá ao Estado disponibilizar uma proteção especial ao colaborador.
O delator, obviamente, é um “arquivo vivo” e, por isso, desperta interesse tanto do Estado, que precisa protegê-lo para que seus depoimentos possam ser prestados e anexados ao processo, quanto dos seus antigos parceiros de crimes, que pretendem impedir que o dedo-duro continue entregando tudo e todos às autoridades.
Entretanto, apesar da Lei 9.807/99 ser expressa ao prever que o Estado deverá aplicar “em benefício do colaborador, na prisão ou fora dela, medidas especiais de segurança e proteção à sua integridade física”, fato é que, diversamente do que se dá com as testemunhas protegidas, a proteção não se estende aos familiares do delator. Ou seja, ainda que o “réu colaborador” tenha a proteção do Estado, os seus familiares não a terão.
Talvez seja por essas razões, então, que a “delação premiada”, inspirada no plea bargaining do direito americano, tenha pouca aplicação na prática. O “delator”, por mais nobres sejam as razões que o tenham levado a entregar seus ex-comparsas, sempre deve pensar na sua própria segurança, como também, e principalmente, na da sua família.
Positivamente, só ao final de tudo é que será possível ao “réu colaborador” ponderar se, de fato, todo o seu sacrifício foi válido para ter (em troca) apenas uma diminuição da pena. Em muitos casos, a benesse concedida vale muito pouco pelo risco inerente à delação premiada.