*Euro Bento Maciel Filho é advogado criminalista, mestre em Direto Penal pela PUC-SP e sócio do escritório Euro Filho Advogados Associados - eurofilho@eurofilho.adv.br
A recente execução de um brasileiro na Indonésia, por fuzilamento, deu início a uma série de debates. Afinal, esta foi a primeira vez que um brasileiro, preso e condenado à pena de morte por crime cometido fora do país, paga com a própria vida pelo delito praticado.
É evidente que toda a discussão gerada em torno dessa questão decorre, em grande parte, do fato de não estarmos acostumados com esse tipo de pena, já que, como bem se sabe, a nossa Constituição Federal proíbe, expressamente, as penas de morte. De fato, tamanha violência não faz parte do nosso sistema jurídico – ainda bem!
Se analisarmos o fato sob um enfoque estritamente jurídico, a morte do brasileiro, efetuada em cumprimento a uma sentença legítima emitida por Membro do Poder Judiciário da Indonésia, não deveria causar tanto espanto. Afinal, queiram ou não, a Indonésia apenas se limitou a aplicar a sua lei a um caso concreto que ocorreu dentro do seu território. Em suma, limitou-se a exercer o princípio da soberania.
A “soberania” é a capacidade que cada país tem de editar suas próprias normas, sua própria ordem jurídica, de tal forma que qualquer norma interna só possa valer nos casos e nos termos admitidos pela própria Constituição.
Assim, se o sistema penal da Indonésia prevê a pena de morte para quem pratica o crime de tráfico de drogas e, ainda, se o brasileiro foi lá flagrado, de fato, com quilos de cocaína, tudo a demonstrar uma clara situação de tráfico internacional de entorpecentes, parece evidente que a imposição da pena capital é uma mera consequência lógica, absolutamente legal.
Porém, é bom dizer que, atualmente, os países não podem mais ser vistos e entendidos como “ilhas” no mapa mundi, ainda que cada um tenha a sua própria soberania. A ideia de soberania estatal, hoje, deve ser compreendida a partir dos conceitos de abertura, cooperação e integração. Não há mais que se falar no antigo conceito de soberania nacional absoluta, que tinha os Estados isolados uns dos outros, que pouco se comunicavam entre si. Hoje, vivemos num mundo globalizado, numa época em que os países “dialogam” mais entre si e buscam, conjuntamente, maior cooperação e formas de regulação jurídica cada vez mais vinculantes.
Porém, mesmo apesar da evolução do conceito de soberania, a Indonésia, nesse caso atrelada aos antigos parâmetros, fechou-se em si mesma e aplicou a sua lei.
Entretanto, muito embora não se pretenda aqui discutir a soberania da Indonésia, fato é que a circunstância de se estar aplicando uma punição extremamente cruel a um cidadão estrangeiro, cujo país natal não prevê a pena capital, deveria ter merecido uma maior atenção por parte das autoridades indonésias.
Com efeito, por se tratar o condenado de cidadão estrangeiro, o governo indonésio poderia ter se mostrado mais flexível. Ora, quem nasce, vive e cresce em um determinado país, evidentemente, está acostumado com o seu sistema penal, com seus princípios e com as suas leis.
Assim, quem nasce e é criado na Indonésia, sempre conviveu, desde pequeno, com a ideia de que o crime de tráfico de drogas é severamente punido. Porém, o mesmo não pode ser dito com relação ao cidadão estrangeiro.
Ora, ainda que o “turista” saiba que na Indonésia a pena de morte é comumente aplicada ao crime de tráfico de drogas, certo é que o cidadão que ousa desafiar o sistema punitivo indonésio não atua com o escopo de causar descrédito às instituições ou à cultura legal do país. Seu fim é meramente lucrativo.
Positivamente, tamanha violência imposta ao cidadão estrangeiro era, em tudo, desnecessária. A ideia moderna de soberania, baseada no diálogo entre os Estados e na cooperação mútua, demandava um desfecho diverso, mais humano.
Até porque, como bem se sabe, no Direito existe a presunção de que um determinado cidadão sempre estará ligado às normas do seu País de origem, esteja ele onde estiver. Por força disto, de acordo com o princípio da “nacionalidade ativa”, um determinado Estado tem o direito de exigir que o seu cidadão, quando no estrangeiro, adote comportamentos que estejam de acordo com o seu ordenamento jurídico.
No caso aqui discutido, é evidente que a conduta praticada pelo brasileiro é definida como “tráfico de drogas” tanto na Indonésia quanto no Brasil. Porém, enquanto o país asiático pune esse comportamento com a violenta pena de morte, o Brasil aplica, para o mesmo fato, uma severa pena privativa de liberdade, que pode variar entre 05 e 15 anos de reclusão.
O importante, aqui, não é saber qual legislação é “melhor” ou “mais eficaz”, mas sim perquirir se, apesar da soberania da Indonésia, a aplicação da pena de morte ao brasileiro poderia, ou não, ter sido evitada.
Nosso Código Penal prevê, expressamente, que a lei penal brasileira poderá ser aplicada ao brasileiro que cometa crimes no exterior (artigo 7º, inc. II, alínea “b”), desde que preenchidas as diversas condições exigidas para tanto.
Desta forma, caso o governo indonésio tivesse sido mais flexível, é evidente que o brasileiro, após ser extraditado para o Brasil, aqui seria preso para cumprir a pena. Não haveria impunidade.
Logo, partindo do princípio de que o cidadão brasileiro não se achava mesmo ligado às tradições culturais e jurídicas da Indonésia e, ainda, levando-se em conta que ele seria punido no Brasil caso fosse extraditado, o que, ao cabo de contas, poderia justificar tamanha inflexibilidade por parte do país asiático?
Nesse ponto, é relevante mencionar que a República da Indonésia integra a ONU e é subscritora da Declaração Universal dos Direitos do Homem e, também, de outros diplomas internacionais que valorizam os direitos humanos. Logo, só por isso, é forçoso reconhecer que a Indonésia reconhece e adota, como um dos seus alicerces legais, a ideia de que “todo homem tem direito à vida” (conforme a referida Declaração, artigo III).
Aliás, vale aqui dizer que a Indonésia até coloca tal princípio em prática, posto que, conforme foi recentemente veiculado na imprensa, entre 2013 e 2014, pelo menos 300 terroristas deixaram a cadeia. De fato, em 2002, o grupo Jemaah Islamiyah, ramo da Qaeda no Sudeste Asiático, matou 200 pessoas num atentado suicida praticado em Bali. O mesmo grupo explodiu duas vezes o hotel JW Marriott em Jacarta, em 2003 e 2009 e, mesmo assim, pelo menos 830 pessoas ligadas àquelas ações terroristas deixaram a cadeia nos últimos dez anos.
Como se vê, se, de um lado, os terroristas vêm tendo um tratamento mais complacente e humano, de outro, os traficantes de drogas continuam sendo tratados com extremo rigor. Quanta contradição!
Em meio a tamanhas contradições, a inflexibilidade adotada nesse caso – já que foram diversos os pedidos de clemência negados pelo governo indonésio –, ao que parece, decorre de duas razões principais, uma política e outra meramente simbólica.
De efeito, a primeira, de cunho evidentemente político, está ligada ao fato de que, durante recente campanha eleitoral, o candidato vencedor (atual Presidente) prometeu ser extremamente rigoroso com o tráfico de drogas e, por isso, agora não poderia voltar atrás, sob pena de “perder os votos” de quem o elegeu. Já a segunda, de matiz evidentemente simbólico, evidencia que o governo indonésio, ao assim agir, não só pretende impor a sua soberania a qualquer custo, doa a quem doer, como também deixa claro, para toda a comunidade internacional, que o tráfico de drogas não será tolerado de forma alguma. E, praticamente, um aviso para o estrangeiro que pretenda traficar entorpecentes em solo indonésio.
Enfim, se certa ou errada, se exagerada ou não, infelizmente, a pena de morte foi executada à risca.
Espera-se, contudo, que o cumprimento exemplar daquela sentença não faça ressurgir por aqui a discussão sobre a inclusão da famigerada pena de morte em nosso sistema punitivo. Infelizmente, a pena capital ainda possui alguns (poucos) defensores. O que chega a assustar e causar espanto, pois a sua adoção, certamente, representaria um grande retrocesso.
De toda forma, o debate referente à previsão da pena de morte em nosso ordenamento jurídico, que hoje já se encontra devidamente sepultado por aqui, não pode, nem deve, voltar à tona. Positivamente, já temos problemas demais para nos preocupar.