Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Era um entardecer primaveril. Deitado sobre a relva, com os dedos das mãos entrelaçados sob a cabeça que girava como um carrossel de recordações, eu permitia que o sol manso da hora me tocasse. Reminiscências não são necessariamente saudades, mas a saudade pode ser reminiscências – fragmentos de lembranças. Saudade pode ser de um aroma, de uma textura, de um som que ficou gravado na memória...
Ah, saudade! Abro os olhos devagar, e com a lentidão de quem tem a eternidade, caminho até a margem do rio cujo leito preguiçoso relaxa e acalma. O cintilante tom de mel que o sol derrama sobre as águas me faz recordar a mulher amada – seu olhar, sua voz, a delicada meia-lua de suas unhas... Tudo nela me cativa, tudo dela me fascina.
É pena que não haja um lenço ao alcance das mãos. Permito-me chorar como um homem deve permitir-se chorar. Uma cachoeira morna e salgada desce por minha face e forma um afluente do rio que contemplo. Há um farfalhar cadenciado nas folhas das árvores onde pássaros em esfuziante algazarra se preparam para o repouso noturno. Experimento uma sensação de pertencimento. Sou árvores, pássaros, sonhos... Sinto-me embalado em uma rede enquanto ouço um fado triste, mas belo e bom de ouvir.
Ainda olho para o rio manso e suas águas permanecem douradas pelo sol. Ouço o canto crepuscular de um rouxinol e recordo Edith Piaf. Estou tranquilo como uma paz genuína...
Sinto-me agora como uma sequóia-gigante e longeva – contemporânea de Jesus. Uma sequóia que ouviu e cantou a canção do vento que foi cantada e ouvida pelo Mestre. Fui banhado pelas mesmas chuvas que caíram na infância do Cristo. Senti o acariciante refrigério do sereno que tocou o manto do Nazareno.
A onomatopeia original, a flauta de Euterpe, a lira de Terpsícore, Bach, Mozart, Chopin... Todos os sons se juntam à sinfonia dos pássaros na circunvizinhança. Súbito soa Over the rainbow – Judy Garland está nas imediações.
Sou uno e múltiplo – Pessoa e heterônimos -, e aprendi que tudo vale a pena se a alma não é pequena. Agora estou sentado na relva, inundado de sentimentos – preso nas malhas de um fado cantado por Amália. Silente, fecho novamente os olhos, e ouço:
“Com os olhos fechados fica mais fácil ver a face de Deus...”
Reabro os olhos e permaneço em silêncio.
“Sou Érato, musa da Elegia”, apresenta-se ela, e reforça a fala inicial, “amar é a melhor maneira de agradar a Deus.”
“Você me tocou?!...”, sussurro.
“O rio de lágrimas, o fado e demais elementos foram para inserir em você um momento de lirismo e ternura na bela nesga de tempo que é o empardecer desse entardecer.”
“Então... O cenário foi determinante?”
“O amor foi determinante, foi, é e sempre será”, disse Érato, “vivo a esparzir amor nos corações desde que soprou a primeira brisa.”
Fiquei bebericando as palavras da musa. Os pássaros quedaram e o murmurejar do rio tornou-se o único som dentro do reinante silêncio. Érato retoma a fala:
“Você conhece os recortes da existência, quem ama recebe o dom da viagem atemporal, dos recuos no tempo que recebem o nome de saudade.”
Não quero falar sobre silêncio nem calar palavras no peito. Não quero candura nem acalento – nada além desse momento. Amo e de amar não abro mão...
Meu coração está em festa. Saúdo a lua – farol dos enamorados!