Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Chovia ininterruptamente há vários dias. No início, a água caía, deslizava e se perdia por entre os paralelepípedos do calçamento e outras fendas do lugar. Mas logo as regiões baixas ficaram alagadas. Então a Defesa Civil iniciou o trabalho de evacuação nas áreas de risco. Os moradores eram retirados de suas casas e conduzidos a locais mais elevados. A própria Defesa Civil precisou mudar-se, montou o Centro de Operações no alto de um monte. E a chuva persistia.
E os lugares altos do lugar foram reduzidos dia após dia, pois a água, que não parava de cair... e subir, a tudo ia cobrindo. E já não havia espaço para comportar todas as pessoas removidas dos locais baixos. Chegou o dia em que um grupo de cerca de trezentas pessoas – últimas sobreviventes – ocupava o único lugar do lugar que ainda não tinha sido alagado. E a chuva persistia.
Foi então que um Homem surgiu por entre a cortina líquida e caminhou na direção do pequeno grupo. Vinha com um andar lento e regular – cada passo medindo um metro cravado. O Homem não usava guarda-chuva nem capa impermeável e tinha duas paralelas verticais no peito. Sorriu e apresentou-se ao grupo:
“Sou o contador de histórias.”
Fez uma ligeira pausa e retomou a fala:
“No princípio, criou Deus os céus e a terra, e sucederam eventos até a criação e queda do homem, e Adão, o primeiro homem, coabitou com Eva, que deu à luz a Caim, o primogênito, e depois deu à luz a Abel, este era pastor de ovelhas; aquele, lavrador. E levantou-se Caim contra Abel, seu irmão, e o matou.”
“Depois Eva deu à luz outro filho, a quem pôs o nome de Sete. E Sete gerou a Enos, que gerou a Cainã, que gerou a Maalalel, que gerou a Jarede.”
“Jarede gerou a Enoque, que gerou a Matusalém. Andou Enoque com Deus e já não era, porque Deus o tomou para si. E Matusalém – que viveu novecentos e sessenta e nove anos -, o mais longevo de todos, gerou a Lameque, que gerou a Noé, que construiu a arca.”
“E a corrupção caiu sobre o gênero humano, e o dilúvio a tudo varreu. E os eventos sucederam até que Tera gerou a Abrão, com quem o Senhor entrou em aliança. Depois Deus mudou o nome de Abrão, que passa a chamar-se Abraão, e muda também o nome da esposa de Abraão, que de Sarai, passa a ser Sara.”
“E todas as gerações, desde Abraão até Davi, são catorze; desde Davi até o exílio na Babilônia, catorze; e desde o exílio na Babilônia até Cristo, catorze.”
“E depois do nascimento do Cordeiro de Deus que veio para tirar o pecado do mundo, sucederam-se os eventos, sempre análogos, como que em uma espiral ligeiramente – quase imperceptível – ascendente e...”
A chuva persistia. E o contador de histórias interrompeu a narrativa, quase ninguém prestava atenção ao que Ele dizia. E quando Ele começou a se afastar, pouco antes da ascensão, um dos componentes do grupo de cerca de trezentas pessoas disse:
“Ele tem um Y nas costas, é estranho! Duas paralelas verticais no peito e um Y nas costas, isso deve ter algum significado oculto.”
“Você e suas teorias malucas!”, exclamou alguém que estava ao lado, “Ele só está usando um suspensório, trata-se de um antigo acessório da indumentária masculina.”
E a água estava à altura da cintura das pessoas do grupo. E todos olhavam para suas respectivas caixinhas retangulares que já não funcionavam. Uma pena! Queriam tirar uma selfie, eternizar o momento e, quem sabe, ganhar algumas curtidas.