Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Uma chuva preguiçosa caía. Um homem de chapéu branco protegia-se sob uma marquise. Passava um pouco da meia-noite quando outro homem saiu de um prédio que ficava do outro lado da rua. O de chapéu branco viu quando o outro caminhou em sua direção com um andar lento. Quando chegou a uma distância apropriada para um diálogo, o de andar lento parou e disse:
“Salve, noite estranha e ranzinza, essa.”
“Salve, diria que estranhos e ranzinzas são os dias em que vivemos”, disse o de chapéu branco, “é como se estivesse acontecendo um banquete de ódio.”
“Já que você mencionou o banquete de ódio, o que me preocupa é constatar que o número de pessoas dispostas a participar desse banquete é muito grande.”
“Sim, isso é, de fato, preocupante, e até surpreendente se levarmos em conta que as pessoas são essencialmente boas; sou da opinião de que o grande número de pessoas dispostas a participar do banquete de ódio é um fenômeno que está ligado ao surto.”
“Nos dias de hoje os surtos pululam, a que surto você se refere?”
“Refiro-me ao surto de estupidez, este é, certamente, o surto que conduz ao ódio.”
“E tem aí uma agravante: o surto de estupidez não é percebido e/ou assumido por aquele que foi infectado pelo vírus da estupidez.”
“É verdade, ao contrário daquele que foi alvo de um surto de dengue ou gripe, que assume ter sido infectado, aquele que foi infectado pelo surto de estupidez, justamente por ter sido infectado, nega ter sido; um infame paradoxo!”
“Qual é mesmo o vírus causador da estupidez?”
“Vírus sofrem mutações, o vírus causador da estupidez pode ser deficiência ou excesso de informações, má-fé... a variante do momento é a chamada mentira.”
“E não podemos deixar de mencionar o surto de loucura.”
“É, são tantos os surtos, estamos na era dos surtos.”
“Estou aqui pensando no que aconteceria se, por um milagre ou coisa assim, a classe política fosse assolada por um surto de honestidade.”
A História está repleta de milagres. Eis que outro milagre aconteceu: um surto de honestidade caiu sobre a classe política. Infectado pelo vírus da honestidade, um candidato em campanha disse aos eleitores:
“Não tenho nenhum projeto para o país, sou um completo idiota, mas, preciso do voto de vocês para garantir meu foro privilegiado e meus privilégios outros e beneficiar minha família e meus amigos, quero que o povo se dane...”
Curiosamente, apesar do discurso proferido, o candidato foi eleito.
“São todos iguais, esse aí pelo menos foi sincero”, disseram os eleitores.
Os cientistas políticos disseram que o resultado das eleições foi reflexo direto do surto de estupidez. Já os políticos ficaram em polvorosa, pois o surto de honestidade alastrou-se entre eles impiedosamente e veloz como fogo em rastilho de pólvora.
“Esse surto de honestidade é uma séria ameaça”, disse um político tradicional em uma reunião de emergência que fora convocada para discutir o assunto, “vamos exigir que pesquisadores, infectologistas e cientistas de todas as áreas desenvolvam, com a urgência que a situação pede, uma vacina que nos livre desse terrível vírus.”
“Mas o povo continua a nos eleger mesmo quando proferimos discursos absurdos”, disse um jovem político, de primeiro mandato.
“Mas dizer a verdade ao povo não tem a menor graça”, disse um velho político, “além do mais, ao dizer a verdade, perdemos nossa essência, meu rapaz...”