Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Estevão Prado, o paciente, lançou um olhar de indisfarçável desconfiança ao doutor Murilo Carneiro e disse:
“Por gentileza, desligue o computador, ou afaste-se dele, doutor.”
“Ah, sim, mas... é intrigante, o senhor tem alguma coisa contra computadores?”, perguntou o doutor.
“Eu não colocaria nesses termos”, disse o Estevão.
“Quero que o senhor fique absolutamente à vontade”, disse o doutor Murilo, “não estou aqui para censurá-lo, o senhor pode dizer e/ou perguntar o que quiser, mas, por outro lado, caso não queira falar sobre o computador, está tudo bem.”
“O problema é que o doutor tem o teclado ao alcance das mãos, temo que possa escrever algo comprometedor a meu respeito.”
“Não vou fazer nenhuma anotação”, afirmou o doutor Carneiro, “pode confiar em mim e no sigilo que, por uma questão ética, deve prevalecer entre médico e paciente.”
“Não me sinto inteiramente à vontade, afinal, essa é a primeira sessão.”
“Está bem, pronto”, disse o doutor, desligando o computador, “está mais à vontade agora?”
“Sim, melhorou, podemos começar.”
“O senhor pode começar me dizendo quando teve início a perseguição.”
“A perseguição existe desde que dei meus primeiros passos.”
“Curioso, por ocasião dos primeiros passos a pessoa não carrega culpa alguma.”
“Mas... mesmo depois de todos esses anos, não sinto o peso de nenhuma culpa.”
“Nenhuma? O senhor não tem nenhum sentimento de culpa?”
“Cheguei a sentir inveja do Marcello, mas, isso foi há muito tempo, já passou.”
“Quem é Marcello?”
“Marcello Mastroianni, ator.”
“Por que teve inveja do Marcello Mastroianni?”
“Elementar, meu caro doutor, Mastroianni trabalhou com Claudia Cardinale, Anita Ekberg e Sophia Loren, como não invejar um sujeito tão sortudo?!”
“E essas mulheres, quem são?”
“Deusas do cinema, mulheres belíssimas.”
“Nunca ouvi falar de nenhuma delas, provavelmente não são do meu tempo.”
“Às vezes fico amnésico, agora, por exemplo, estou tentando lembrar o nome do descobridor da América e não consigo.”
“Essa é fácil, o descobridor da América foi Cristóvão Colombo.”
“Presumo que o genovês Cristóvão Colombo também não foi do seu tempo...”
“Sim, sim”, disse o doutor, “voltemos à perseguição.”
“Todas essas pessoas mexendo em seus pequenos objetos retangulares que emitem som, podem estar tramando secretamente, armando um complô contra mim, mas, o pior de tudo, é ser perseguido por ela desde meus primeiros passos.”
“Ela? Então o senhor chegou a ver sua principal perseguidora?”
“Sim, às vezes ela vem atrás de mim, depois de alguns passos, passa à minha frente, outras vezes caminha descaradamente a meu lado, e o pior é que não consigo despistá-la, doutor, exceto quando mergulho na total escuridão.”
“Mas... precisa ir à polícia, denunciá-la, ela pode deixá-lo louco, senhor!”
“Já pensei nisso, mas, creio ser um tanto quanto deselegante denunciar minha própria sombra, não acha, doutor?”