Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Depois de muito matar, o matador decidiu morrer.
Em uma terça-feira plácida, Belizário Peçanha estava diante do computador. A noite corria dentro de uma normalidade enervante, como se a morte estivesse à espreita, camuflada em algum canto próximo. O homem abriu o arquivo, correu os dedos pelo teclado e, minutos depois, leu o que acabara de escrever:
Se não existisse a morte, tudo seria eternamente adiado, instalar-se-ia um quadro de diuturna estagnação; logo; também não existiria o movimento da vida. Se não existisse a morte, eu certamente me mataria, ou melhor, tentaria me matar.
A morte representa o fim da sensação de frio, calor, sede, fome... o fim das necessidades e frustrações cotidianas inerentes aos vivos, bem como das inquietações das perdas. Matar um homem é conceder-lhe muitos benefícios, entre eles, a imortalidade. Benditos sejam os matadores.
Belizário Peçanha, o matador, cogitou a possibilidade de reunir suas reflexões em um livro, depois adormeceu. Mas, na quarta-feira... bem, voltemos ao mote inicial.
Depois de muito matar, o matador decidiu morrer.
A decisão de morrer, criou um problema ético-moral: Belizário exercia a arte de matar como nenhum outro matador, com um perfeccionismo irretocável, assim, matar a si mesmo seria injusto para com a profissão, o suicídio interromperia o fluxo do próprio ofício. Restava, pois, a opção de procurar outro matador e encomendar a própria morte.
Peçanha fez contato com um matador da velha guarda, uma escola à qual ele próprio, Belizário, pertencia. E na noite de quarta-feira, à mesa de um bar discreto, Peçanha tomou um gole de uísque e disse ao colega:
“Preciso encomendar um serviço.”
“Pegou um serviço grande e precisa de apoio?”, perguntou Anselmo Anjo, o outro matador. E respondeu à própria pergunta, “não tem problema, pode contar comigo, terminei um serviço há três dias e, no momento estou livre, sem nenhum contrato a cumprir, nada pendente, assim...”
“Não é bem isso”, disse o Belizário, “não quero seu apoio para realizar um serviço, quero contratá-lo, mas você terá de realizar o serviço sem minha ajuda.”
“Entendi, é tanto serviço que o grande Belizário está terceirizando”, disse o Anselmo, “seja como for, repito, pode contar comigo, quem é o alvo?”
“O alvo sou eu”, anunciou o Belizário, sem rodeios.
Anselmo Anjo engolia seu uísque, engasgou, tossiu, pigarreou e, por fim, disse:
“Co... como é?”
“Eu disse que sou o alvo, quero contratar você para me matar.”
“Mas... Por quê?... Você é o melhor...”
“Não importa”, disse o Belizário, “só tenho uma condição, o serviço tem de ser executado à moda antiga, uma bala certeira, grosso calibre, sem sofrimento.”
Depois de alguns uísques o contrato foi fechado. Mas, uma semana depois, no mesmo bar, o Belizário perguntou ao Anselmo:
“É possível cancelar aquele nosso contrato?”
“Você sabe que é impossível”, disse o Anselmo, “não seria ético.”
“Eu já esperava por isso, sou seu alvo, e vice-versa, que vença o melhor.”
Levantaram um brinde e, como cavalheiros, disseram boa sorte um ao outro. Despediram-se, seguiram em direções opostas com a sensação – ainda mais viva – de terem a morte nos calcanhares...