Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
O velho Jeremias deslizou o polegar e o indicador da mão esquerda pelo bigode, afagou calmamente o cavanhaque alvo que descia até o peito e disse:
“Os trilhos estão por toda parte, os trilhos e os dormentes cobrem todos os milímetros quadrados, todos os lugares em que a vida pulsa.”
“Mas... os trilhos, assim como os dormentes, são invisíveis, certo?”
“O fato de serem invisíveis, não significa que são inexistentes, não se vê o ar e a fé, mas ambos existem.”
“O homem tende a aceitar com mais facilidade o que os olhos podem enxergar.”
“Por estarem dormentes, os homens não conseguem enxergar os trilhos, nem os dormentes, ocorre que a humanidade, ainda que dormente, movimenta-se, isso explica os tropeços dos homens.”
“Então a humanidade está mergulhada em uma espécie de sonambulismo?”
“O sonambulismo é caracterizado por movimentos automáticos e inconscientes que se manifestam durante o sono natural ou provocado, entretanto, no sonambulismo, as pessoas não se lembram de tais movimentos ao despertar”, respondeu Jeremias, “os dormentes a que me refiro têm consciência de seus movimentos, o problema está no equívoco do movimento praticado.”
“Nesse caso, o problema pode ser resolvido com a inércia, a ausência de movimento evita o tropeço.”
“Mas o homem não é um ser inanimado, ele se movimenta até mesmo involuntariamente, ademais, o problema maior não é o tropeço, tampouco a queda que o tropeço pode provocar, pois basta levantar-se e recomeçar os movimentos.”
“E qual é o problema maior?”
“O problema maior é priorizar apenas o que os olhos carnais enxergam.”
“E o que deve ser priorizado?”
“O que pode ser visto com os olhos da alma, como a fé, o amor, Deus...”
“Deus é Aquele que tudo sabe e tudo pode, Ele poderia apontar um caminho e orientar o homem acerca de seus movimentos e ações.”
“Deus já fez isso, Deus não é mudo, o homem é que é surdo.”
“E correm trens pelos trilhos invisíveis aos olhos da face?”
“Sim, locomotivas rebocam vagões pelos trilhos, recolhendo passageiros.”
“Muitos vagões?”
“Muitos, comboios de vagões, e em tempo de guerra, pandemia, fome e, sobretudo, desamor, vagões extras são providenciados, já que o número de passageiros aumenta consideravelmente.”
“E quem são os passageiros?”
“Todos são passageiros, todos irão embarcar no trem, não há fuga possível.”
“E quanto à bagagem? O destino?...”
“Como bagagem, o passageiro leva apenas suas ações, estas, por sua vez, vão determinar o destino”, o velho Jeremias parou por um instante e arrematou, “está escrito no livro de meu xará 13.16: Daí glória ao Senhor, antes que Ele faça vir as trevas, e antes que tropecem vossos pés nos montes tenebrosos; antes que, esperando vós luz, Ele a mude em sombra de morte e a reduza à escuridão.”
“Se ao menos soubéssemos a hora que o trem vai passar!”
“Por ser o trem de todas as horas, ele não tem hora pra passar.”
É preciso prudência nas ações. O apito do trem pode soar a qualquer momento.