Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
No meio da manhã – pouco antes das nove horas -, da janela de um apartamento, Cleber lançou um olhar para a avenida, virou-se para a esposa e disse:
“Mas... o que é isso? O trânsito pesado desapareceu, a avenida está deserta.”
“Deve ser reflexo do preço do combustível”, brincou Beatriz, a esposa.
O combustível estava com o preço realmente estratosférico. Mas a avenida não estava deserta só de automóveis, não havia bicicletas na ciclovia, e até mesmo os praticantes de Cooper tinham desaparecido. A avenida estar deserta era inusitado, sobretudo para aquele horário; pombos a caminhar despreocupados, desfrutando a quietude reinante era a única presença de vida que Cleber e Beatriz podiam ver.
De repente, o mistério foi esclarecido. Motocicletas surgiram, quebrando o silêncio e provocando a revoada dos pombos. Era um grande grupo de batedores abrindo caminho para a passagem da comitiva de Jairo Blindado. Logo surgiu o próprio Blindado em uma motocicleta.
“Está explicado”, disse Beatriz do seu posto de observação, “é o presidente Blindado, o trânsito foi interrompido para outro passeio inútil do Blindado.
“Você proferiu uma palavra com a qual eu não concordo”, objetou Cleber.
“E qual é a palavra que eu disse, com a qual você discorda?”, perguntou Beatriz.
“Presidente, você disse presidente, eis aí a palavra da qual discordo.”
“Está bem, ele não é presidente, apenas está presidente, concorda agora?”
“Na verdade ele não é nem está presidente, ele não exerce o cargo, nunca exerceu, e nem tem gabarito para isso, o cargo de presidente está vago, tudo o que esse sujeito faz, desde que, simbolicamente tomou posse, é campanha pela reeleição...”
Naquele momento, em uma comunidade paupérrima, Dunga e Feliz estavam em um boteco. Feliz engoliu sua dose de cachaça de nona – nona classe, não avó italiana. O líquido – batizado - desceu queimando. Feliz sentiu o corpo sacolejar, emitiu um barulho esquisito, deixou o copo vazio sobre o balcão encardido e disse:
“Por enquanto a gente vai sobrevivendo, mas, sobreviver está cada vez mais difícil e caro, só mesmo parcelando em muitas vezes no cartão.”
Como se fosse um ritual ou uma cena teatral ensaiada amiúde, Dunga repetiu o gesto de Feliz: engoliu sua cachaça de um só gole, deixou o copo sobre o balcão e disse:
“Já não é possível pagar sequer os juros do cartão, isso porque não tem ninguém no comando do país, esse tal de Blindado cometeu diversos crimes, podemos dizer que Blindado só não caiu por estar blindado, ele é o pior presidente que já tivemos.”
Enquanto Dunga e Feliz conversavam e listavam os crimes cometidos por Blindado, a caravana deste saiu da avenida e entrou em uma rua transversal que conduzia à comunidade em que os dois amigos bebiam a cachaça de nona.
“O Estado brasileiro é uma espécie de Hood Robin”, disse Cleber à esposa.
“Você está fazendo uma ligeira confusão”, disse Beatriz, “não é Hood Robin, é Robin Hood, protótipo do bandido de bom coração, aquele que rouba dos ricos para dar aos pobres, inspirou vários filmes!”
“Não, é Hood Robin, mesmo, Robin Hood às avessas, rouba dos pobres para dar aos ricos; aos pobres, apenas migalhas.”
Na comunidade, um grupo se reuniu em torno de Blindado, este pagou cachaça e cerveja para todos. Pagou no cartão, corporativo, é claro.
“O Blindado é o melhor presidente que já tivemos”, disseram mais tarde o Dunga e o Feliz. Estavam bêbados, mas que disseram, disseram.