Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
O peregrino Belchior chegou à cidade de Altarin pelo lado Sul, onde um riacho separava a cidade de uma reserva florestal riscada por trilhas. Para entrar no município era preciso atravessar o riacho por uma pinguela. O peregrino preparava-se para fazer a travessia quando viu uma placa ao lado de uma cacimba. Aproximou-se e leu a placa:
Poço dos desejos. Elabore mentalmente seu pedido e atire uma moeda.
Belchior pegou uma moeda para atirar no poço. Então ouviu um rugido apavorante que o fez tremer, um rugido tão forte que deixou até os arbustos encolhidos e arrepiados. Um homem cego que acabara de sair da floresta, aproximou-se do peregrino, vinha conduzido por um leão-guia de estatura descomunal. O cego era um ancião e segurava um cordão que estava preso ao pescoço do gigantesco felino. O ancião direcionou seus olhos – órbitas em branco – ao peregrino e disse:
“Bom-dia, menino, meu nome é Menestrel Impávido e estou aqui para preveni-lo quanto ao pedido que está prestes a fazer.”
O olhar de Belchior passou do ancião ao leão, e deste novamente àquele, como se olhasse para um colibri bicando alternadamente duas flores. Procurou se refazer do susto e, ainda um pouco trêmulo, balbuciou:
“Prevenir-me?!...”
“Sim, preveni-lo de que é preciso formular corretamente o pedido”, disse Menestrel, “um dia cheguei aqui, dirigi-me ao poço e formulei mentalmente meu pedido, desejei não mais ver injustiças, atirei uma moeda e fiquei cego, cada pessoa tem direito a um pedido apenas, já usei o meu; os homens formam uma comunidade, tudo está conectado e somos um só, estou aqui para evitar que você cometa o mesmo equívoco que um dia cometi, deixar de preveni-lo seria errar novamente.”
“Fico-lhe muito agradecido, amigo”, disse Belchior.
“Foi um prazer orientá-lo, e também conhecê-lo”, disse o ancião, com um sorriso largo e autêntico, “agora preciso voltar para a floresta”, sacudiu o barbante que estava preso ao pescoço do leão e passou o comando, “vamos, Bonitão, para a floresta.”
O grande felino seguiu em direção à floresta. Impávido e Bonitão tinham andado cerca de quinze metros quando Belchior atirou uma moeda no poço dos desejos. Menestrel parou de repente, o leão também. Tudo era tão belo! O ancião Impávido já não precisava tocar para apreciar a graça singela de uma flor silvestre, ou para saber que a água do riacho se movimentava preguiçosamente; já não era necessário ouvir o canto para saber qual era o pássaro que pousara no galho próximo. Impávido olhou para Bonitão, a juba do amigo oscilava suavemente ao vento, fazia jus ao nome, era mesmo bonitão. O ancião voltou e se aproximou novamente de Belchior, olhou-o com emoção e um brilho intenso nos olhos, tão intenso que fez das duas lágrimas que rolaram em sua face, pequeninas estrelas reluzentes ganhando liberdade.
“Sou eu quem agradece”, disse o ancião, abraçando Belchior, “estou aqui há milênios e todos os dias venho ao poço cerca de trinta vezes para prevenir as pessoas sobre o perigo que pode representar a errada formulação de um pedido; no entanto, você foi o primeiro a desejar algo para outra pessoa, até hoje, todos os que por aqui passaram, desejaram coisas para eles próprios.”
“Desejei que sua visão fosse restaurada porque o bem-estar de um irmão é o que de mais precioso podemos desejar”, disse o peregrino Belchior.
Os pássaros ocuparam as árvores próximas e os peixes subiram para a superfície. Todos queriam presenciar o abraço entre Impávido e Belchior.