Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Um automóvel de luxo – do ano e blindado - desce lentamente pela rua. As residências do bairro têm muros altos encimados por cacos de vidro e fios eletrificados. O carro de luxo entra em uma rua transversal e desaparece, minutos depois reaparece e repete o mesmo trajeto. No interior do automóvel tem um casal. A mulher ostenta joias cujo valor seria o suficiente para matar a fome de todos os moradores de um bairro periférico durante meses. O homem tem um semblante inflexível, se a perfeição existisse, poderia ser classificado como um perfeito idiota, mas, como a perfeição não existe, pode ser definido como um idiota carregado de imperfeições.
O automóvel anda em círculos por cerca de noventa minutos.
“Não vamos entrar, amor?”, pergunta, finalmente, a mulher.
“Sim, vamos dar só mais uma volta”, responde o homem, “é preciso ter certeza de que não tem nenhum vagabundo de tocaia, esperando para dar o bote.”
“Não tem ninguém”, afirma a mulher, “estamos circulando pelas imediações há uma hora e meia.”
“Está bem, verifique se os fuzis de caça com canos superpostos estão aí.”
“Sim, cinco no banco traseiro junto com seis automáticas, outro entre nós dois, com três automáticas e duas facas de comando.”
“Ótimo, vamos entrar, então.”
O homem aciona o controle e abre o portão automático. O casal entra e fecha o portão sem nenhuma desagradável surpresa. No interior da residência, o homem apanha uma arma municiada que está sobre uma mesa, mostra a arma à mulher e diz:
“Tirei o guarda-mato, para disparo rápido, como se usa em pesqueiros; nunca se sabe quando vai entrar um vagabundo pela porta, tá o.k?”
“Se você está dizendo!”, murmura a mulher.
De repente, a arma dispara, o projétil abre um buraco no peito da mulher que está pintada em um quadro, na parede.
“CUIDADO!”, grita a mulher das joias caras.
“É preciso flexibilizar ainda mais o acesso a armas de fogo”, diz o homem, “assim podemos nos proteger dos vagabundos e defender a pátria, tá o.k.?”
“Você está começando a falar como ele.”
“Ele quem?”
“Deleta, vou tomar um banho”, diz a mulher, “não demoro.”
A mulher segue para o banho. O homem começa a examinar as imagens captadas pelas câmeras de vigilância e vê uma motocicleta parando em frente ao portão. O motociclista aperta o botão do interfone, volta à motocicleta e começa a mexer em uma grande caixa. O dono da casa corre até o portão e abre fogo. Por sorte a pontaria do homem funciona tão bem quanto seu cérebro e o motociclista consegue fugir. O atirador retorna ao interior da residência. A mulher volta do banho e diz:
“Quis experimentar algo trivial e pedi uma pizza, já chegou?”
“Então era o entregador de pizza? despejei bala no vagabundo, mas ele fugiu, preciso melhorar a pontaria, tenho liberdade para ter armas e direito de acertar o alvo.”
“Estou aqui pensando”, diz a mulher, “será que o entregador de pizzas não tem o direito de entregá-las sem que isso coloque em risco sua vida?”
“Opa, de que lado você está?...”
“Do seu lado, é claro, amor”, responde, apressadamente, a mulher. Seria imprudente responder de outra forma, já que o idiota manuseava uma metralhadora.