Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
No final da tarde caiu um chuvisco, um chuvisco tão tímido que não chegou a molhar o asfalto sob as árvores que ladeavam ruas e avenidas. CHUVA, mesmo, com as cinco letras maiúsculas, foi a de balas. Um tiroteio entre assassinos profissionais sacudiu o início da noite. O entrevero provocou tanto barulho que muitos valentões deixaram o local em desabalada carreira e, até mesmo as viaturas policiais que estavam nas imediações seguiram – em alta velocidade – para bairros distantes; o que comprova aquela velha filosofia de almanaque: todo mundo quer ir para o céu, mas ninguém quer morrer. O tiroteio tingiu o anoitecer de vermelho e deixou oito corpos estendidos.
Pouco depois da meia-noite, o assassino Camilo Rômulo chegou à sua residência, Tinha um risco de bala no braço esquerdo, mas o olhar continuava inalterado, gelado e sem o menor vestígio de dor, desconforto ou qualquer emoção. Antes mesmo de entrar na casa, sentiu um perfume suave na tez da noite. Respirou fundo e girou a maçaneta da porta da frente. Com calculado e prudente vagar, empurrou a porta e entrou.
Parado no centro da sala, Camilo viu – ainda que isso pareça paradoxal e impossível ao homem comum – que a invisível e suave fragrância tinha subido as escadas. Silencioso como um felino, seguiu o rastro de perfume até chegar à porta de seu quarto. Ambientes fechados são propícios para lutas com arma branca. Camilo entrou no aposento, e o fez com tal rapidez que, impossível saber se havia entrado pela porta, pela janela, pelo teto... enfim, surgiu no quarto como que num passe de mágica.
“Você não cravaria essa lâmina em mim”, disse a ruiva de olhos amendoados, apontando para a faca que Camilo Rômulo segurava.
“Como é que você sabe?”, perguntou o assassino.
“Elementar, você é da velha escola de assassinos, por uma questão ética, não seria capaz de matar uma mulher a faca, não suportaria ver o brilho da vida sendo apagado de meus olhos, o que, devido à proximidade, o assassino sempre enxerga em sua vítima.”
“Pode ser”, disse Camilo Rômulo, “mas devi informar, por uma questão de cavalheirismo, que tenho uma automática municiada em um coldre, sob a axila.”
“Eu sei”, disse a ruiva, “e também sei que tem outra pistola presa à panturrilha, mas, devo preveni-lo que, se tentar sacar qualquer uma das armas que está portando, vai dormir antes que consiga usa-la.”
“Você porventura é a bela ruiva que veio fazer com que eu durma?”
“É isso aí, mas... você costuma deixar as lâmpadas acesas durante a noite, tem algum motivo especial para isso?”
“Se por um milagre, Deus resolver enviar um anjo para me livrar do inferno, quero iluminar o caminho para que o enviado de Deus não tropece na escada.”
“Vejo que há humanidade em seu coração, embora tenha acabado de eliminar oito pessoas.”
“Eu era o alvo, precisava me defender.”
“”Depois de matar pela primeira vez, todos se tornam alvos, mesmo que apenas da própria consciência.”
“Não sou mercenário, minha cédula preferida é a de cinquenta cruzados novos.”
“Claro, por causa do poema de Carlos Drummond Andrade, certo? O poema que termina com: Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças. Sou filha de Morfeu e neta da Noite; estou aqui para embalar seu sono, afugentar seus pesadelos.”
E Camilo Rômulo dormiu como uma criança, sem mácula e sem culpa.