Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Logo que surgiu a madrugadora aurora de róseos dedos...
Perdão! E pode ficar tranquilo, esse texto não será elaborado em metáforas estranhas, como as encontradas em Odisseia, de Homero. Vamos, pois, recomeçar,
Logo pela manhã, Hermes ouviu sons de trovões quebrando o relativo silêncio da hora. Caminhou até o quintal e percebeu que nuvens negras cobriam a cidade. Havia a promessa de chuva forte, daqueles temporais capazes de fazer com que girafas em pé se afoguem.
Hermes tomou o costumeiro banho matinal. Engoliu uma xícara de café preto e iniciou a leitura de um livro. Por volta das dez horas foi verificar a caixa de correspondência, encontrou folhetos de propaganda, contas a pagar e um pequeno envelope pardo. Pouco depois, deixou os folhetos de propaganda e as contas sobre a mesa, abriu o envelope pardo, retirou de seu interior uma folha de papel, sentou-se em uma cadeira e iniciou a leitura do pequeno texto.
Pequeno Manifesto: Caríssimo filho, ao pequeno texto que tem nas mãos, pode dar o nome que preferir: Epístola, missiva, carta, bilhete... Como você bem sabe, a linguagem oral é o meu forte, escrever nunca foi minha praia, não é segredo para ninguém que tive amigos leais que escreveram minhas palavras. Mas, como eu ia dizendo – ou melhor, escrevendo -, pode dar o nome que quiser ao pequeno texto que tem nas mãos. Estou muito preocupado com você e seus irmãos, é bem verdade que, sempre estive, mas minha preocupação tem aumentado sobremaneira nos dias que correm. Quero aqui manifestar tal preocupação, bem como justificá-la.
Tenho notado que os homens modificam sistematicamente a lei ao bel-prazer das circunstâncias e casuísmos. Como um tufão nefasto, os interesses políticos e econômicos das forças dominantes devastam os mais humildes, em sã consciência, não há como negar que tais forças agem para criar, reformar e suspender direitos.
Homens truculentos têm chegado ao poder e, claro, uma vez no poder, tais homens tendem, naturalmente, a promover a violência estatal contra setores da sociedade que deles discordam. E o pior é que tal violência é posta em prática sem ruptura da ordem vigente, pois, de um lado, conta com a conivência das elites que querem a manutenção de seus privilégios e, de outro, conta com a inércia das massas incautas, amedrontadas e preocupadas com a sobrevivência cotidiana ante o poderio econômico. Assim, homens inescrupulosos compram consciências por migalhas.
Vejo que as classes dominantes detentoras do poder minimiza as precárias condições de vida dos menos favorecidos. Entristece-me saber que é negado o perdão ao humilde, antes mesmo que ele cometa o pecado. Priorizar a lógica mercantil, em detrimento da construção reflexiva voltada à harmonia solidária é um erro crasso.
Salafrários do poder operam amiúde como contorcionistas do absurdo transformando, de modo supostamente legal, o que é ilegal em legal. Tenho intercedido junto ao Pai em favor dos homens, dizendo: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem...”
Mas, o Pai, que tudo vê e tudo sabe, fará com que todo o que se exalta seja humilhado, e o que se humilha seja exaltado...
Hermes interrompeu a leitura por um momento. Verificou o envelope pardo, não havia o nome do remetente. Foi tomar outra xícara de café e, quando retornou, o envelope e o Pequeno Manifesto haviam desaparecido.
Nuvens negras e carregadas pairavam ainda lá pelos lados do Planalto Central.