Em tempos de julgamento de mensalão e de propaganda eleitoral, a hipocrisia tende a reinar soberana. Hipocrisia, essa homenagem do vício à virtude, como dizia La Rochefoucauld, é mais humana do que parece. E tão mais frequente quanto supomos ou desejaríamos. Impugnando-a com todas as forças (morais), somos todos tão acostumados a ela que nem a percebemos e, vira e mexe, nos pegamos seduzidos por seus encantos. Como explicar esse contraditório fenômeno?
Kant havia ensinado que o agir moral deve ser conforme a uma lei universal que carregamos implícita em nossa razão. Moralmente, não nos devemos conduzir por interesse ou instinto, mas por um dever, uma boa vontade bastante e boa em si mesma. Mas essa é uma tarefa frustrante mesmo para os mais empedernidos moralistas. No sentido positivo do termo, claro. Incluam-se aí todos os cognotivistas e alguns realistas. O senso moral, nato ou aprendido, não é só necessário, como possível ao processo civilizatório. Quanto mais nos distanciamos da horda, mais moralmente coerentes nos tornamos.
Acabo de ler um livro que, repleto de pesquisas e experimentos de psicologia evolucionária, questiona, em parte, essas premissas. Não trata da necessidade de sermos agentes morais cem por cento, mas da possibilidade de sermos assim. Robert Kurzban é seu autor. E “Why Everyone (Else) Is a Hypocrite: Evolution and the Modular Mind”, o título. A tese é polêmica: somos todos hipócritas, porque a hipocrisia é o estado natural da mente humana. E por quê?
Porque nossa mente foi evolucionariamente desenvolvida como um conjunto de módulos ou áreas especializadas em cumprir certas funções, como a visão, a fala, as emoções e o julgamento moral. Muitas vezes, elas agem de modo convergente. Tantas outras, não, motivando hesitações e comportamentos contraditórios, nonsense e, claro, alta dose de hipocrisia. Nem sempre faço o que digo ou acho. Sequer sei, ao certo, como certos juízos morais apareceram como relevantes em minha mente. Quase sempre, só depois encontro razões para justificá-los. O a priori kantiano seria, na prática, a posteriori. Este é um ponto obscuro para a ciência da mente. Mais fácil, todavia, é explicar os deslizes morais, valendo-se do “cérebro modular”.
Simples assim: as áreas cerebrais que estão por trás dos julgamentos morais não são as mesmas que comandam nossas ações. A contradição e a hipocrisia são “biologicamente” inevitáveis. Uma parte de nós nos move a satisfazer nossos desejos de modo mais fácil, outra nos obriga a calcular os custos e a correção dos meios de satisfazê-los. A consistência entre intento e atitude, entre a moral e a ação só é procurada quando promove a eficiência do funcionamento do sistema como um todo. Fora daí, é fisiologicamente irrelevante para o cérebro.
Não somos um “eu” monolítico e todo poderoso, mas um “nós” fragmentado e precário. E biologicamente programados para a hipocrisia. Falta um módulo a ser estudado por Kurzban: como posso perceber, sentir e aprender com essa contradição toda? Ele não diz. Deve ter ficado para o próximo livro.
*José Adércio Leite Sampaio é Jurista