O sonho da casa própria habita bem fundo o inconsciente da classe média. Para muitos tem sido antes um pesadelo. Há aquelas pessoas que foram agraciadas por herança de pais que lhes deixaram patrimônio suficiente para logo no início da vida conjugal conseguir moradia própria. A imensa maioria, porém, administra com dificuldade os salários para obter economias que lhes possibilitem construi-la ou adquiri-la.
A casa própria disputa espaço entre muitos outros desejos dos jovens casais de classe média. Para uns, logo de início o automóvel absorve as primeiras economias. Se ambos têm lugar de trabalho diferente, muitas vezes requerem-se dois carros com boa dose de gastos, que esvaziam as cadernetas de poupança. Outros pertencem ao mundo acadêmico. No horizonte, estão mestrados e doutorados no país e mesmo no estrangeiro. De novo, o desejo da casa própria fica postergado.
Outros ainda defrontam-se com o projeto de ter filhos ainda jovens, aumentando consideravelmente os gastos de início de vida familiar. Adia-se a moradia própria por mais uma razão. Ela parece problema unicamente econômico, mas não acontece assim. Entram questões profissionais, familiares, afetivas em jogo que impedem conseguir-se habitação própria.
E se o problema não se resolve nos primeiros anos, interferem outros complicadores com o passar dos anos. O custo operacional da família de classe média cresce com as exigências que se aninham com o decorrer dos anos. O efeito-demonstração funciona muito forte. Os colegas de profissão saem de férias a regiões de turismo nacional ou internacional, deixando frustrados os que para economizar fazem férias baratas nas casas dos pais ou sogros. Daí os desejos de viajar. E lá se vão as poupanças. Manter nível cultural razoável importa gastos pesados em livros, CDs, teatros, cinemas, que fazem estrago nas reservas para eventual construção da casa.
Girando o olhar para os planos de habitação, tanto criados pelo Estado, quanto por empresas privadas, surgem outras dificuldade para a casa própria. O Estado existe para agilizar a vida dos cidadãos. Nasce precisamente do contrato entre todos a serviço de todos. As realidades históricas estão entregues à liberdade humana, trabalhada desses os inícios pelo duplo movimento do bem e de mal. Pinta-se o bem como ideal. Caminha-se para ele por vias tortuosas e confusas por causa da vontade tocada pela maldade. Assim o Estado. Nas leis, nas constituições consegue ter face até bonita. Mesmo aí os interesses sectoriais conseguem marcá-la com rugas.
Os mais poderosos economicamente configuram-no a seus interesses. Nos planos habitacionais não acontece diferentemente. Há muitos beneficiários da indústria de construção cuja ganância contraria as vantagens dos usuários. Daí brotam leis que em vez de facilitar a posse da casa própria terminam por dificultá-la. Muitos entraram na sua aventura e sofreram o vexame do homem do evangelho que começou a construir e não conseguiu acabar. As pernas do desejo foram mais cumpridas que os passos das possibilidades econômicas ou a inocência dos inícios do plano não captou os perigos da viagem.
Problema setorial que se defronta com a situação maior do sistema que aí está. Não para ajudar a todos, mas em benefício dos espertos e poderosos que o manejam. Questão, portanto, de cidadania e honestidade. Só nesse horizonte maior que os problemas menores encontram solução.
*João Batista Libânio é teólogo jesuíta