Sob essa assertiva radical, alguns disputantes do pleito municipal tentam uma jogada de mestre no tabuleiro dos programas eleitorais. A intenção dos profissionais que fazem o marketing televisivo é afunilar o discurso, selecionando as propostas de maior impacto (abordagem positiva) avaliadas em pesquisas qualitativas e acendendo fogueiras (abordagem negativa) para queimar a imagem de adversários.
Na eleição paulistana, a maior dos municípios, essa posição se escancara em razão da ferrenha contenda que envolve os candidatos que disputam o ingresso no segundo turno. O pano de fundo que acolhe a peleja é a histórica polarização entre PSDB e PT, o primeiro arregimentando seus exércitos para manter o império tucano no Estado de maior densidade eleitoral do País e o segundo usando o carisma de Lula e o poderio da presidente Dilma para recuperar os domínios políticos e administrativos da metrópole, que já estiveram sob seu comando. Os resultados dessa rixa serão emblemáticos. Terão forte influência sobre os horizontes eleitorais de 2014, na medida em que balizarão os projetos nacionais de poder do petismo e do tucanato. A entrada do ex-presidente Fernando Henrique na guerra, ao lado do governador Alckmin, fazendo frente a Lula e Dilma, corrobora a tentativa recíproca das duas estruturas de acentuar a polarização que, nos últimos anos, tem agitado suas campanhas.
Dito isto, emerge a clássica interrogação: os ícones partidários alavancam a posição de seus candidatos? Os argumentos favoráveis e contrários abrem acalorado debate. As pesquisas indicam que elevado contingente de eleitores tende a confirmar o voto no candidato endossado pelos patrocinadores. Na prática, a hipótese nem sempre se confirma. Do alto de sua popularidade, Lula não conseguiu levar Aloizio Mercadante à vitória para o governo do Estado em 2010, da mesma forma que não conseguira impulsionar Marta Suplicy nas eleições municipais de 2004 e 2008. Cada campanha, sabe-se, desenvolve circunstâncias próprias. Daí a dificuldade de tomá-las como modelo assemelhado.
No caso de São Paulo, porém, cristaliza-se a hipótese de que o eleitorado tome decisão sob o escudo impermeável da autonomia. Não significa que as grandes lideranças deixem de exercer influência. Mas sua força residual serve mais para consolidar posições já assumidas por segmentos de eleitores. Deixando as coisas mais claras: Fernando Henrique, ao pedir voto para José Serra, reforça, nos segmentos por onde circula sua fama, decisões já tomadas por votantes serristas. Lula e Dilma usam o poder de sua imagem bem avaliada para, em primeiro lugar, inserir Fernando Haddad em seu berço e, em segundo lugar, para trazer de volta aos currais petistas “ovelhas desgarradas”. Por que podem ser mais eficazes que FHC como cabos eleitorais? Ora, porque são vistos pelas massas como os comandantes de um status quo cujo elemento mais sensível, neste ciclo da vida nacional, é o tamanho do bolso. É ali que se guarda a grana (mesmo curta) para alimentar o estômago. O russo Serge Tchakhotine começa seu estudo de política lembrando que os dois instintos de conservação do individuo são o combativo e o nutritivo. Ou, adaptando o slogan de James Carville, ex-marqueteiro de Clinton, “é o bolso, estúpido”.
A segunda polêmica é sobre a desconstrução de adversários. Nos Estados Unidos essa estratégia tem eficácia. Ali se revezam no poder dois grandes partidos. Veja-se a atual campanha. Quem dá o tom maior é a economia. Democratas sustentam que, apesar das dificuldades, a economia estará melhor daqui a quatro anos e republicanos dizem que o modelo Obama está esgotado. Apesar da polarização sobre temas como saúde, imigração, aborto e direitos dos homossexuais (republicanos são conservadores e democratas, liberais), a decisão será dada pelo eixo econômico. Lá o “desfazimento” de perfis obedece ao roteiro de “esfacelamento” do corpo econômico.
Voltemos à nossa realidade. Trazer o mensalão para o menu eleitoral, como fazem FHC e o candidato José Serra, agrega valor à campanha? Pouco provável. E a razão é que a nuvem cinzenta gerada pelo caso, se é sensível às camadas médias, não abala o ânimo das margens periféricas, cuja sensibilidade está conectada às questões de emprego, saúde, segurança, educação, etc. Por outro lado, espraia-se o sentimento de que desvios e ilícitos não são exclusividade de um partido, repartem-se por outros entes. No caso do mensalão, os petistas até respondem com situação parecida que teria ocorrido em Minas Gerais.
No sistema cognitivo das massas, a corrupção está no DNA de nossa política. Algo que se assemelha ao ferro que imprime no gado a marca do proprietário. Está impressa na origem. Por esse jogo de associações, tendem a nivelar partidos e jogar todos os escândalos na lata de lixo da banalização. Argumento idêntico é o que tenta carimbar candidatos com o selo religioso. O princípio constitucional é claro: governo e instituições religiosas devem ser mantidos separados e independentes uns dos outros. Infelizmente, as relações entre cultos e poder político se imbricam, frequentemente, sob uma teia de interesses esparsos e difusos. Daí a busca de apoio religioso pelos candidatos. Mas essa é a prática do mercado político, não sendo exclusiva de um ou outro partido. Aduz-se, da mesma forma, que eventuais ligações de candidatos com igrejas não afetam suas posições no índice de intenção de votos. Apenas reforçam convicções assumidas por eleitores.
Por esse raciocínio, pode-se concluir que águas sujas (desvios, ilícitos) não poluem a imagem de candidatos nem ameaçam sua votação? Depende. Se um candidato em plena campanha for flagrado em atitude aviltante, imoral, ganhando seu ato ampla visibilidade, terá poucas chances de resistir ao abalo. Será consumido pelo fato e suas circunstâncias. Em tempo: os traques que se ouvem, aqui e acolá, não estão nessa escala de riscos.
*Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato