Ficou o vazio. Não há ninguém no lugar dela. Desde que foi eleita rainha do rádio, 60 anos atrás, e era morena de sobrancelhas grossas como as de Malu Mader (o que a envaidecia, vejam só, quando alguém dizia isso), Hebe reinou no Brasil. Absoluta, pode-se dizer. Nenhuma outra mulher da mídia teve um lugar como o dela no coração do público. Amada pelo povo, estudada pelos intelectuais mais sérios e respeitados como Sergio Micelli, que escreveu A Noite da Madrinha para entendê-la sociologicamente. Hebe não precisava de explicações. Fenômeno natural, era nossa amiga, irmã, mãe, namorada, amante, ídolo.
Havia quem a criticasse, a chamasse de brega, cafona. Quantas vezes ouvi isso? Como você pode gostar da Hebe? Eu gostava, milhões gostavam. Até quem dizia que não gostava gostava, por maior que seja o paradoxo. Não gostando, era só se aproximar dela para gostar. Poucas vezes vi uma pessoa com tal capacidade de seduzir. Porque tudo nela era autêntico, natural, solto, Hebe jamais representou. Foi grande o suficiente para ser relax, mesmo quando a vida à colocou duramente à prova, e a colocou inúmeras vezes.
Nos aproximamos nos anos 80, quando eu escrevia para o Shopping News, semanário que era distribuído gratuitamente aos domingos e atingia 500 mil pessoas. Hebe vinha sendo criticada violentamente por ser amiga do Maluf, certamente o contrário dela, um dos personagens menos amados deste Brasil. Defendi o direito dela ser amiga de quem quisesse, era um direito democrático. Nós escolhemos de quem gostamos e com quem queremos nos relacionar, independentemente dos outros, da opinião alheia.
Recebi um telefonema dela, convidou-me para jantar e tudo começou. A crônica, ampliada e emoldurada, estava na parede de sua casa. Nunca vi pessoa mais fiel. A cada livro, ela me buscava para seu programa. Fiquei admirado. Era só aparecer na Hebe e a venda de livros crescia. A madrinha tinha poder. Vez ou outra chegavam flores em casa. Ao encontrá-la num restaurante ou bar ou fosse o que fosse, vinha um selinho e um afago. Fui um dos “gracinhas” dela. Não foi uma, foram várias as festas em sua casa no Sumaré ou no Morumbi (foram duas as casas ali).
Certa vez, Andrea Carta, editor da Vogue, produziu uma revista inteira dedicada a ela. Devassamos sua casa, seus álbuns, realizamos um dos mais completos levantamentos da vida dessa mulher que por 60 anos foi ícone, símbolo. Ela abriu os cofres de joias, uma de suas paixões. Penetramos numa infinidade de closets onde havia centenas e centenas de vestidos, os mais esfuziantes. Tudo regado a vinho branco e a inumeráveis caipiroscas. Hebe era a rainha do brilho. O brilho das joias, dos vestidos, dos cabelos loiros, do sorriso eternamente entregue às pessoas, mesmo quando a dor a aguilhoava.
Em 1996, quando fui para o Hospital Albert Einstein para uma cirurgia de aneurisma, ela ligou cedo, 9 da manhã, para Marcia, minha mulher. “Ele está entrando no centro cirúrgico”, Marcia informou. Três horas depois, nova ligação. A uma da tarde, outro chamado. Hebe estava ficando nervosa. Cinco, seis, nada ainda. “É grave assim?”, ela perguntou. “É delicada e demorada”, foi a resposta. Oito da noite, nove. Ao saber que eu continuava na mesa, Hebe não se conteve em lágrimas: “Puta que o pariu, meu Deus!”, uma explosão autêntica, misturando palavrão ao sagrado, com temor e naturalidade. Contei isso em meu livro Veia Bailarina.
Seu programa sempre refletiu suas escolhas e idiossincrasias. Levava gente de quem gostava. As mudanças do mundo, da mídia, da sociedade, fizeram o Ibope cair. Poderia ter se aposentado, mas isso significaria sua morte. Mudou de canal para tentar mudar também. Nos últimos meses de sua vida, ficou sem receber os salários, uma indignidade. Silvio Santos teve o gesto de afeto, acolheu-a, deu-lhe um novo contrato. Hebe deve ter morrido em paz. Assinar um contrato significava vida. Porém, esta tem seus caminhos. Agora, fica o vácuo. Mulheres que com sua morte provocaram comoção nacional me lembro de três: Ruth Cardoso, Elis Regina e Hebe Camargo.
Ninguém que está aí e que tenta substituí-la tem o carisma, a força, o talento para ser Hebe. Ou, melhor, a nova Hebe. Uma outra Hebe. São pálidas imitações. Imagino neste momento, particularmente, a dor de algumas pessoas. A do filho Marcelo e a de Rosinha Goldfarb, Lolita Rodrigues, Regina, sua eterna produtora, e a do fotógrafo Petrônio Cinque, que a seguiu e a fotografou por décadas, documentando momento a momento uma vida inteira.
*Ignácio de Loyola Brandão é escritor