*A. P. Quartim, De Moraes
O fenômeno do estrondoso sucesso da novela Avenida Brasil tem merecido a atenção de críticos e especialistas, mas entendo que há um ângulo pelo qual ainda não foi devidamente considerado. Não se trata apenas do êxito excepcional de um exemplar do gênero literário que há muito se consagrou no Brasil: a teledramaturgia, que domina, em termos de audiência, o horário nobre de nossa TV aberta. O sucesso da telenovela de João Emanuel Carneiro evidencia claramente a importância que a boa literatura de ficção tem como o espelho d’alma no qual nos reconhecemos e ao universo que nos cerca. E é exatamente por cumprir esse papel que ela é fundamental para a formação cultural das gentes.
Logo no primeiro capítulo da Introdução à sua obra seminal Formação da Literatura Brasileira, Antonio Candido alude aos principais denominadores comuns que permitem reconhecer uma determinada fase literária e “que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização”. O mestre destaca três desses denominadores comuns: os escritores - “a existência de um conjunto de produtores literários”; os leitores - “um conjunto de receptores (...) sem os quais a obra não vive”; e “um mecanismo transmissor (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros”. E acrescenta que esse conjunto de três elementos “dá lugar a um tipo de comunicação inter-humana, a literária, que aparece sob este ângulo como sistema simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade”.
Neste mundo globalizado do início do terceiro milênio da era cristã, a transformação (é prudente evitar o termo “evolução”) dos usos e costumes que são causa/efeito da extraordinária evolução, aí, sim, tecnológica do último século - essa transformação nos coloca no mundo digital, em plena sociedade do consumo, da imagem, do espetáculo, das celebridades, do ritmo vertiginoso de vida que frequentemente mais parece um fim em si mesmo do que um meio de fazer o ser humano feliz e realizado. É claro, portanto, que a literatura, esse “aspecto orgânico da civilização”, vive necessária e inevitavelmente uma fase diferente da de décadas atrás, no que diz respeito tanto a autores quanto a leitores, mas, de modo muito especial e radicalmente distinto, no que se refere a seu “mecanismo transmissor”, que não se refere apenas à palavra, à linguagem e seus estilos, mas também ao veículo, à plataforma concreta que constitui o mecanismo material, o instrumento da transmissão.
A esse respeito há uma falsa questão recorrentemente colocada, que especula sobre o “fim do livro” diante da “ameaça” das novas mídias digitais. Pura bobagem, que só deve preocupar os negociantes de livros. Livro é, essencialmente, conteúdo. No dia em que o avanço da tecnologia digital conseguir consagrar uma nova forma para ele, esta passará a predominar na veiculação dos conteúdos literários, até agora predominantemente feita pelo livro. Poderá resultar até, em futuro imprevisível, na extinção do livro impresso. Mas o mais provável é que este, até onde a vista alcança, sobreviva em harmônica convivência com o digital.
Uma questão realmente importante quando se trata de conteúdo literário diz respeito ao fato de que, em medida variável, mas inevitável, a forma condiciona o conteúdo. Por definição, a literatura é escrita para ser lida. A dramaturgia, para ser encenada ao vivo. A teledramaturgia, na forma específica e dominante do folhetim (exibição seriada), para ser massificada por meio da televisão. Todas essas manifestações literárias, que frequentemente se interpenetram, compõem o amplo elenco das obras ficcionais que nos exprimem. E é natural que a teledramaturgia, veiculada por uma mídia com enorme capacidade de massificação, se tenha transformado, em nosso país, em via predominante de acesso àquele tipo de comunicação inter-humana mencionado por Antonio Candido.
Até aí, tudo bem. Até porque, apesar de não ser regra geral, a teledramaturgia brasileira conquistou um nível de qualidade formal e de conteúdo que é hoje reconhecida no mundo inteiro. Mas é claro que, quando se trata de fazer o papel de espelho d’alma de uma sociedade - especialmente de uma sociedade tão ampla, complexa, heterogênea e culturalmente frágil como a brasileira -, a novela de televisão só consegue chegar até certo ponto. É na leitura que o necessário aprofundamento das reflexões suscitadas pela boa ficção literária encontra seu melhor instrumento. E é claro também que é na ficção brasileira, e não da estrangeira, que se encontram subsídios essenciais à discussão de nossa identidade cultural.
E é por aí que a coisa se complica entre nós, uma vez que os escritores e a boa literatura de ficção nacionais têm cada vez menos espaço em nosso mercado editorial. Confiram-se as listas de mais vendidos na categoria de ficção. É território praticamente interditado para obras brasileiras, devido à culturalmente suicida política de perseguição incondicional ao best-seller praticada pelos fundamentalistas do mercado que hoje decidem o que deve ou não ser publicado pelo big business editorial. A situação só não é pior graças a um punhado de pequenos e médios editores conscientes que ainda se empenham em encontrar o ponto de equilíbrio entre a qualidade de conteúdo e o potencial comercial de seus catálogos.
Menos mal, de qualquer modo, que novelas dominam o horário nobre da televisão aberta. Se essa programação fosse montada com a mesma mentalidade dos donos do big business editorial, em vez de Avenida Brasil, estaríamos hoje assistindo a Lost, Sex and the City e que tais na hora do jantar.
*A. P. Quartim, De Moraes, jornalista e editor. E-mail: apqdm@uol.com.br - O Estado de S.Paulo