Muitas pessoas sentem Deus como um peso. Os existencialistas à la Sartre, meio século atrás, achavam que era preciso escolher entre Deus e o ser humano, entre Deus e a liberdade.
A visão bíblica é diferente. O ser humano faz parte da criação, está no mundo e com o mundo, solidário com as outras criaturas, em primeiro lugar com os outros humanos, como representante de Deus – criado à sua imagem (= representando-o) e semelhança (= com semelhante poder). Os herois gregos (Sísifo, Prometeu...), eram tragicamente grandes por enfrentarem seus deuses um tanto arbitrários... O homem bíblico é grande não contra Deus, mas com Deus! Deus faz aliança com o ser humano, primeiro de modo parcial e representativo (pelo menos, assim é que foi percebido), em Israel, e depois, de modo pleno e universal, em todos os que se tornam discípulos de Jesus de Nazaré, iniciador da “nova aliança”.
Jesus é Deus-conosco, Emanuel. Falando segundo o gênero adotado pela própria Bíblia, no Gênesis, podemos dizer: Adão e Eva não conseguiram conviver com Deus no paraíso. Queriam ser iguais a ele, e por isso erraram no jeito de ser sua “imagem e semelhança”, seus representantes autorizados. Nós, porém, acertamos o jeito colocando-nos do lado de Jesus, pois ele é Deus no meio de nós. Basta escutar o que ele ensina e agir do modo como ele age, para sermos imagem e semelhança de Deus.
É isso que chamamos de revelação, manifestação de Deus. A missa da aurora de Natal cita, a respeito da vinda de Jesus, a Carta de Paulo a Tito: “Manifestou-se a bondade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor pela humanidade” (Tito 3,4). Se quisermos saber como Deus é, basta olhar para o presépio. E para a cruz (uma lenda antiga diz que são da mesma arvore, já que Belém é perto de Jerusalém). Na noite que precede a crucifixão, Jesus diz: “Quem me viu, viu o Pai” (João 14,9).
Não um deus onipotente, onisciente, fiscalizador, opressor como muitos pensam. E por isso mesmo também não se deixa comprar com promessas e ofertas estranhas (dessas, ele desconfia...). É um deus que, por amor, assume o pior sofrimento.
A revelação não é um pacote de verdades buscadas no céu e entesouradas em algum depósito da fé (aliás, essa palavra ‘depósito’ não tem no Novo Testamento o sentido que tem hoje, mas significa o que foi transmitido, confiado a alguém). A revelação é uma vida, e a gente percebe-a vivenciando-a! Por isso tinha de ter forma de vida humana. Assim como Jesus viveu e morreu (no Credo está que ele morreu mesmo!), assim é Deus. Por isso sua vida é eterna, para além da morte: ressurreição. E se nós assim vivemos até morrer, somos “imagem e semelhança de Deus”, assim como Deus nos concebeu. Participamos da nova aliança com ele, inaugurada em Jesus.
Parece linguagem poética, idealista, figurativa, fugitiva? Mas de Deus não se fala de modo ‘objetivo’, como de um objeto fora de nós. A percepção de Deus é algo que vivemos no profundo de nossa vida. Por isso, Jesus falava em parábolas, contando histórias, para mostrar como Deus vive no meio de nós, em nós. É assim que se fala sobre coisas que não estão aí, disponíveis para observação e uso comum. Mas isso não significa que não sejam reais. São tão reais que dão sentido ao nosso viver!
Deus não se deixa aprisionar em palavras, nem sequer nas da Bíblia ou do catecismo. Só se deixa perceber quando ele é vivido, e para que o possamos vivenciar temos o indício que são os gestos e as palavras daquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida em pessoa.
É assim que Deus humaniza nossa vida. Revelando-se de modo inesperado e dando-se, em Jesus, a conhecer, ou melhor, a vivenciar, revela-nos a nossa potencialidade profunda de ser mais do que parecemos capazes de ser. A platitude de nosso materialismo frustrante, de nosso egoísmo coletivo, de nossa acomodação sem perspectiva, de repente, não é mais a última palavra. O gesto inesperado de Deus nos dá esperança. Somos capazes de algo a mais do que produzir e consumir. Descobrimo-nos capazes de Deus. De Deus que ama até o fim – sem fim.
Deus não rouba nossa humanidade. Revela nossa verdadeira humanidade. Humaniza-nos. E o humanismo que achava Deus um estorvo enganou-se profundamente (basta ver o que produziu). Enganou-se quanto ao sentido de Deus. E do homem.
*Johan Konings é Doutor em Teologia