*Pe. Alfredo J. Gonçalves
Tradicionalmente, são várias e diferenciadas as personagens e suas atitudes nos relatos natalícios dos Evangelhos. Do ponto de vista da Sagrada Família (José, Maria e o Menino), deve defender-se da fúria de Herodes contra o recém-nascido, o que resulta na “legendária” fuga para o Egito. Herodes, por sua vez, teme um rival ao trono e trata de eliminar pela raiz a possibilidade dessa ameaça. Já os pastores e os reis magos acolhem com inusitada alegria da chegada do tão esperado Messias. A estrela é o símbolo de que algo se descortina no horizonte.
Sejam ou não relatos pós-pascais, construídos para entender o mistério da Encarnação e adequar solenemente a “descida” do Deus feito homem, de qualquer forma traduzem um contexto sociohistórico da época. Ou seja, enquanto os poderosos temem e tremem diante das forças rivais vindas da base e da periferia, os pequenos se regozijam com a possibilidade de mudanças na trajetória de suas vidas e do destino da própria história. Vinda do Messias, no contexto de uma Palestina subjugada pelas forças do Império Romano, mexia fortemente com o imaginário popular. Atualizava a esperança por longo tempo nutrida.
Traduzindo para os tempos de hoje, entre o Menino Jesus e o Papai Noel, qual das duas figuras nas festas natalinas provoca maior apelo à onda crescente de vendas e de rentabilidade? A pergunta está subjacente à preparação das vitrines, estantes e ambientação das lojas. Nos grandes centros comerciais –shopping-centers em especial– desde setembro e outubro as duas personagens disputam espaço entre os enfeites, luzes e mercadorias. No cenário profusamente iluminado do emblemático pinheiro, com todas as bugigangas nele penduradas, não pode faltar o presépio nem o personagem vestido de vermelho e branco.
A verdade é que, com o passar dos anos, a motivação do Natal se deslocou do nascimento de Jesus para as inovações de um mercado que nada poupa para ampliar as vendas e os lucros. A Boa Nova do Evangelho cedeu espaço aos modismos da produção em massa, particularmente voltada para as famílias e as crianças. A ânsia ou a compulsão das compras substituiu a mística das celebrações. A sede de Deus tenta saciar-se com novidades cada vez mais numerosas e diversificadas, não importa se made in China, in USA ou in Brazil.
A fúria consumista da massa de novos compradores, atrás dos ingredientes da ceia natalícia, ou em busca dos presentes para amigos e parentes, tomou o lugar da singela alegria dos pastores de Belém com o anúncio, pelos anjos, da chegada do Messias. A estridência apelativa da propaganda abafa o “repique dos sinos”, metáfora rural de algo inovador. O período do Natal se “desencanta”, como diria Max Weber. O mercado rasga o véu do mistério e o sagrado se dilui no burburinho ruidoso das ruas, galerias e anúncios de publicidade.
Nada contra o direito de adquirir os produtos do progresso e da tecnologia. Tal direito deve ser estendido a todas as camadas sociais. Mas é inegável que o tamanho do bolso gera uma hierarquia diferenciada, onde uns curtem uma euforia descontrolada, enquanto outros amargam a vergonha de não poder satisfazer desejos mínimos dos próprios filhos. Em pleno clima de Natal, sucesso e frustração coexistem lado a lado, escancarando como nunca as injustiças e desigualdades sociais.
Tampouco se trata de voltar ao saudosismo do ambiente rural, tradicional, marcado pela voz dos sinos e o tom das novenas. Mas é evidente que o mundo contemporâneo, industrializado, urbanizado e informatizado, constitui a pátria de uma minoria, enquanto grande fatia da população vive as festas natalinas como eventos de fachada e de imitação barata, com o sentimento de permanecer do lado de fora do banquete que Deus preparou para todos. A porta segue cerrada para não poucos!
O fato é que, como já nos lembrava o velho Marx, o capitalismo faz da mercadoria um fetiche. Ela necessita da benção e legitimação de algum ser igualmente misterioso. É então que entra em cena o Papai Noel. O bom velhinho de cabelos e barbas brancas, indumentária familiar, morador de um país longínquo e desconhecido, com um veículo nada moderno, vem magicamente incrementar o processo de compra-e-venda e a rentabilidade do capital. As próprias casas comerciais se revestem de uma auréola sagrada, com música, luzes e sons natalícios.
Nesse ambiente misto de sagrado e profano, o Menino Jesus parece um tanto quanto envergonhado diante da movimentação frenética que se cria ao redor do Papai Noel. Este recebe visitas e mais visitas, é fartamente fotografado, distribui sorrisos e abraços e goza da companhia disputada por uma fila sem fim de crianças ansiosas... Já o Outro, embora pobre e recém-nascido (ou talvez por isso), não chama muita atenção, não atraí multidões, passa meio que despercebido, permanecendo como que deslocado nesse ambiente festivo e iluminado.
Retrato de um mundo materialista, em franco processo de secularização e carente de significado. Farto de coisas e imagens, cores e sons, novidades em tecnologia e produtos. Rico de variadas formas de ter e prazer, mas pobre de sentido. Tão pobre que necessita de uma porção de objetos para preencher o vazio da alma ressequida. Porém, quanto mais desses objetos procura adquirir, maior se faz a sede do espírito. Aí está a astúcia do fetiche: a felicidade parece ser inversamente proporcional às coisas que se acumula para garanti-la. Pior ainda, parece afastar-se à medida que lutamos para adquiri-la.
A um canto, o Menino recém-nascido, mesmo mudo e cego pelo excesso de luminosidade, quase invisível e escanteado, insiste em proclamar a Boa Nova do Evangelho. Na confusão de tantas novidades materiais, sua presença aponta para um “tesouro que a traça não rói nem os ladrões roubam”. Algo que todos buscam, embora poucos admitam.
*Pe. Alfredo J. Gonçalves é assessor das pastorais sociais