Lembram-se do Tiririca, o palhaço eleito com a maior votação do pleito de 2010? Desiludido, anuncia que voltará a fazer graça nos palcos porque na política “não dá para fazer muita coisa”. O mote de sua campanha - “pior do que tá não fica” – parece dar razão ao deputado Francisco Everardo Oliveira Silva, que recebeu mais de um milhão de votos do povo paulista. Basta ver que mudanças na forma de fazer política ganharam passos muito tímidos nos últimos dois anos. Em algumas frentes, em vez de avançar, o país retrocedeu. Veja-se a seara partidária. A par de 30 partidos existentes, pelo menos mais 31 estão sendo criados, a denotar a proliferação abusiva de siglas e os desastrosos efeitos que acabarão mercantilizando cada vez mais a política e jogando-a na bolsa de negociação eleitoral. Trata-se de mais uma demonstração da massa amorfa em que se transformou a estrutura partidária no país. Pior é anotar que isso ocorre num momento de intensa crítica social contra práticas e costumes da velha política.
Nunca se viu tanto alvoroço nas malhas da organização partidária como se observa hoje, haja vista o interesse de múltiplos atores em procurar janelas para sair de seus atuais abrigos partidários e, na pista do troca-troca de agremiações, barganhar condições de apoio às candidaturas em 2014, tanto na área federal quanto na esfera dos Estados. As 500 mil assinaturas exigidas para registro de novas siglas ganham as ruas sob um regime de pressa com prazo de validade. Afinal, para participar do próximo pleito, os novos partidos deverão ser autorizados pelo TSE até outubro deste ano (um ano antes). O que chama a atenção é o foco de atuação das novas siglas. Os nomes sinalizam a especificidade de interesses grupais em detrimento de escopos mais abrangentes e coletivos. Se levarmos em consideração um espectro partidário com, por exemplo, 6 posições – esquerda, direita, centro, centro-esquerda, centro-direita e extrema-esquerda – chegar-se-á a conclusão de que uma constelação com mais de 60 entidades atenta contra o bom senso. Partido é parte do todo, mas isso não significa inserir no arco do pensamento nacional interesses de corporações, núcleos, movimentos etc.
O rol das novas entidades corrobora a tese de que o corporativismo marca forte presença no espectro social. Um partido da mulher brasileira (PMB), que já conseguiu registro em três Estados, quer apostar na hipótese de segmentação do eleitorado por gênero; um tal de movimento negação da negação (MNN), autodefinido como trotskista, mostra interesse em se fixar na margem extrema com um discurso anulando tudo que emana do establishment; o partido de representação da vontade popular(PRVP), pelo visto, pretende apagar os outros, por não representarem a vontade coletiva; o partido novo(PN), claro, joga os outros no baú da senilidade; o partido cristão(PC) contrapõe-se a outros de viés religioso, como o atual PRB, sob a chancela da Igreja Universal; esboça-se uma ARENA, agregando um grupo de jovens de direita que intentam refundar um ente com o mesmo nome que deu apoio à ditadura militar; um partido militar brasileiro(PMB) elege como escopo a segurança pública e, por aí vai, até se chegar ao partido pirata do Brasil(PPB), cuja proposta é a defesa da pirataria nas redes sociais. Nessa moldura oportunista, a Rede, sigla que a ex-ministra Marina Silva lançou, ontem, em Brasília, ganhará até consistência.
Esvai-se, assim, o ideário voltado para o bem comum, conceito que implica a integração de fatores como a liberdade, a justiça, a paz, a utilidade social, a solidariedade e a igualdade. Não se distingue nessa nova modelagem algo que lembre expressões consagradas como o interesse social, a satisfação das demandas coletivas, enfim, “o bem que a todos apetece”, como ensina São Tomás de Aquino. Partido, mesmo querendo significar parcela social, abarca o conceito de comunidade, a “comum união” de pessoas que possuem a mesma natureza e sonham com um mesmo fim. Nesse caso, contrapõe-se ao interesse de corporações e conjuntos que se desdobram para fazer predominar pequena parte sobre o todo.
A facilidade para criar partidos é fruto de uma legislação extremamente liberal, produzida para se contrapor aos tempos em que a ditadura militar mantinha sob cabresto o bipartidarismo da Arena e do MDB, entre 1966 a 1969. Aliás, nossa vida partidária nunca se pautou pela linearidade. No período monárquico, os partidos nacionais não agregavam a participação das bases; no primeiro ciclo da era republicana (1889/1930), em função das articulações entre o presidente e os chefes dos Estados membros, os partidos tinham uma identidade regional; entre 1930 e 1946, o autoritarismo restringiu a liberdade partidária. Só a partir da CF de 1946, os partidos ganharam ares democráticos, passando a exprimir um ideário nacional. A Carta de 1988 abriu as comportas e os partidos se multiplicaram. Poucos, porém, atenderam aos preceitos que os qualificam: catalisar correntes de opinião; formar e selecionar quadros para a política; informar e educar o eleitorado.
Nos últimos anos, os pequenos gargalos foram afrouxados. No final de 2006, o STF derrubou a cláusula de barreira, que assim rezava: “tem direito a funcionamento parlamentar, em todas as Casas Legislativas, para as quais tenha elegido representante, o partido que, em cada eleição para a Câmara dos Deputados, obtenha o apoio de, no mínimo, 5% dos votos apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de dois por cento do total de cada um deles”. Nesses tempos de intensa negociação de tempo de propaganda eleitoral (prática usual entre partidos), de coligações proporcionais (que mesclam siglas de visões opostas e elegem figurantes de parcos votos), de bandeiras rotas e assemelhadas, as fontes partidárias secaram. Em seu lugar, descortina-se um deserto, onde a vegetação tem dificuldades para brotar. Ai, apenas os cactos vicejam. Essa é a terra calcinada da qual pretende se afastar o palhaço Tiririca.
*Gaudêncio Torquato é consultor político