É verdade. Moramos num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. Daqui a pouco tem carnaval e, sob o ritmo que Jorge Ben tão bem sabe puxar, muitas negas chamadas teresas vão rebolar no sambódromo carioca para embevecimento de milhares de turistas, sob os braços abertos de um Cristo Redentor que deita suas luzes sobre a baia da Guanabara. Em outras praças, a farra carnavalesca ganhará as ruas, arrastando, em Recife, mais de um milhão de pessoas atrás do Galo da Madrugada e outros milhares na vizinha Olinda, com seus bonecos gigantes; mais embaixo da costa nordestina, o maior espetáculo momesco, o de Salvador, onde 3 milhões de foliões pularão em frenesi atrás de trios elétricos. As comportas da catarse se abrirão para acolher a alma social, particularmente a juventude, que se embala no clima lúdico. Poucos se lembrarão, no meio da fuzarca, que outra festa, ocorrida há duas semanas, tragara a vida de 236 pessoas, quase todas jovens, na segunda maior tragédia do país, a de Santa Maria, RS. (A primeira foi o incêndio de um circo em Niterói, em 1961, que deixou 503 pessoas mortas). Eis mais uma faceta do Brasil. A imagem de uma gangorra, para retratar o estado social, é mais que apropriada. Altos e baixos se revezam ininterruptamente. Entre o sol nascente e o poente, o choro e a tristeza se recolhem para dar lugar à fruição e à catarse.
Há quem discorde dessa abordagem por observar que é natural, no cotidiano de uma Nação, a convivência dos contrários, a imbricação de eventos felizes e infelizes. Alegria e dor se alternam ininterruptamente. Ademais, argumenta-se, quando se trata de catástrofes, fatores incontroláveis precisam ser considerados. Eis o ponto central da questão que aqui se levanta. Causas imprevisíveis impulsionam eventos de alto impacto, como desastres naturais, aqueles com origem na natureza e que se processam na evolução ou modificação de estruturas climáticas da crosta terrestre. Incluem-se nessa esfera vulcões, furacões, secas intensas e terremotos. Sabe-se que tais fenômenos podem ser também deflagrados pela ação do homem sobre o meio ambiente, o que abre a percepção de haver algum grau de controle, mínimo que seja, sobre ocorrências classificadas como imponderáveis. O fato é que a corrente de acidentes/incidentes em nosso território costuma se ancorar na práxis de gestores públicos, descrita nessa coleção de preceitos erráticos: displicência, desleixo, preguiça, acomodação, protelação, compadrismo, inação. São traços de uma cultura política, assentada no patrimonialismo, e que, ao longo de nossa história, frutificou nos galhos do fisiologismo, mandonismo, grupismo, caciquismo, coronelismo e nepotismo, entre outros.
A faísca que provocou a tragédia de Santa Maria saiu do arsenal da administração pública e é chamada de falta de controle e fiscalização. O olho mais atento do gestor público teria coibido um espetáculo festivo para mais de mil pessoas num espaço para comportar menos de 700 e, pior, com apenas uma pequena porta de entrada e saída. A pólvora da gestão irresponsável - sob a forma da leniência - acumula-se nos cantos e recantos do país, queimando florestas, corroendo biomas, desmanchando escarpas de montanhas, destruindo morros, derrubando favelas e, ultimamente, expandindo o número de vitimas fatais dos acontecimentos. Não há exagero em afirmar que a falta de zelo pontifica em todos os quadrantes do território. Examine-se, nesse exato momento, a condição dos estabelecimentos públicos – escolas, hospitais, maternidades, creches, asilos, cárceres, praças – em qualquer Estado brasileiro e se verá feia radiografia: equipamentos quebrados, falta de higiene, superlotação, prédios sujos, falta de equipamentos, ausência de profissionais em horários de trabalho, corredores locupletados, ecos do desespero. Jogando-se a argamassa das mazelas que corroem a sociedade na panela das transformações que ocorrem no bojo da modernidade – expansão econômica, revolução tecnológica, globalização de costumes e rompimento com valores tradicionais – chega-se a um conceito que tem prosperado em nossos Trópicos: a anomia social.
Entenda-se por anomia a conduta desviante, a incapacidade da sociedade de atingir suas metas culturais por causa da insuficiência de meios que as instituições lhe proporcionam. Desenvolve-se anomia quando os indivíduos se sentem motivados a violar as normas para poder atingir seus fins, suas metas. Quanto maior for a incapacidade do poder institucional de fazer com que os cidadãos se realizem e alcancem felicidade, utilizando as normas vigentes, maior a anomia social. Engrossam a cadeia anômica párias, viciados, alcoólatras, delinquentes e aqueles que se refugiam nos escombros da resignação e desesperança, os descrentes. Mais uma ênfase: a anomia leva em conta o sistema normativo-legal de um país. Nesse ponto, voltemos ao dia a dia nacional. A transgressão que se observa no comportamento social tem conexão com os desvios legais, éticos e morais que povoam o habitat de governantes e representantes. Ademais, dispomos de um cipoal legislativo extremante volumoso e difuso. Resultado: o que é proibido fazer acaba transferido para o departamento de coisas permitidas. Faixas de pedestres invadidas por usuários de bicicletas ou vice-versa? Coisa usual. Da floresta legislativa – mais de 3,7 milhões de leis – milhares se perdem nos esconderijos. Ao final de cada lei, lê-se o dispositivo: “revogam-se as disposições em contrário”. Quem sabe o que revoga o quê? Quando não se cumpre a lei, abre-se uma cratera entre as metas do individuo e as normas que o acolhem. A anomia nasce nesse berço.
Por último, a piada da criação do mundo. “Por que, Senhor Deus, o Brasil ganhou tantas belezas, tão belas condições naturais, enquanto Nações, como o Japão, uma pequena tira de terra, foi agraciado com terremotos e maremotos?” A pergunta feita ao Criador do Céu e da Terra seria hoje fora de propósito.
*Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato