Já na Carta apostólica A Porta da Fé, assim se exprimia o Papa Bento XVI: «Pareceu-me que fazer coincidir o início do Ano da Fé com o cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II poderia ser uma ocasião propícia para compreender que os textos deixados em herança pelos Padres Conciliares, segundo as palavras do Beato João Paulo II, “não perdem o seu valor nem a sua beleza (…). Sinto hoje, ainda mais intensamente, o dever de indicar o Concílio como a grande graça que beneficiou a Igreja no século XX: nele se encontra uma bússola segura para nos orientar no caminho do século que começa”. Quero aqui repetir, com veemência, as palavras que disse a propósito do Concílio, poucos meses depois da minha eleição para Sucessor de Pedro: “Se o lermos e recebermos, guiados por uma justa hermenêutica, o Concílio pode ser e tornar-se cada vez mais uma grande força para a renovação sempre necessária da Igreja”».
Em termos semelhantes expressou-se novamente Bento XVI ao celebrar a liturgia da Quarta Feira de Cinzas e, sobretudo, ao encontrar-se com o clero romano. Suas palavras traziam uma insistência na necessidade de retomar uma hermenêutica séria e profunda do Concílio, sendo esta uma prioridade para a Igreja neste novo século. O Papa, já em tom de despedida, fez questão de sublinhar enquanto falava aos padres da diocese de Roma, mas também aos católicos do mundo inteiro, a importância deste grande evento que marcou a caminhada da Igreja no século XX.
Abalizado está o Papa Bento XVI quando ressalta a importância do evento conciliar. Pois, ainda como jovem professor de teologia dele participou e conheceu por dentro não apenas os padres conciliares, mas os grandes teólogos da época que assessoraram os bispos que compuseram a assembleia conciliar e redigiram os grandes documentos decisivos para a história contemporânea da Igreja.
Criticou fortemente a mídia, que com interpretações distorcidas prejudicou a hermenêutica do Concilio, gerando situações muito negativas: “tantas calamidades, tantos problemas, tantas misérias: seminários fechados, conventos fechados, liturgia banalizada”. Mas Bento XVI insistiu junto a seus ouvintes na importância de retomar essa hermenêutica com fidelidade ao verdadeiro espírito do Concilio. E ao mencionar os pontos obrigatórios dessa releitura, dessa hermenêutica, não hesitou em tocar em pontos delicados, que muita polêmica provocaram nos tempos pós-conciliares, como a colegialidade episcopal e a volta às fontes, especialmente à Sagrada Escritura. Há ainda “muito a fazer para se chegar a uma leitura das Sagradas Escrituras no espírito do Concílio, ela ainda não está completa”, afirmou o Papa seguindo a mesma linha de pensamento que tomara desde o início.
Retomando a abertura dialogal e pluralista que o Vaticano II trouxe à Igreja e à sociedade, Bento XVI valorizou três documentos fundamentais para uma nova atitude da Igreja diante do mundo que deverá gerar um novo tipo de pastoral e de teologia. A Gaudium et Spes, que trata das relações entre Igreja e mundo e que tanto valorizou as “realidades terrestres”; a Dignitatis Humanae, documento aprovado na véspera da conclusão do Concílio e que trabalha sobre o que hoje se chama “liberdade de consciência”; e a Nostra Aetate, que trata da existência da verdade nas outras religiões, ocupando-se sobretudo do necessário diálogo entre cristãos e judeus.
Segundo Bento XVI, esses três documentos deram um impulso importante para definir o diálogo na diferença e na diversidade como momento fundamental para o desenvolvimento do ser humano, na confirmação da fé da unicidade de Cristo. Porém, compreende-se como é sempre necessário um espírito de diálogo, porque em toda experiência religiosa há uma luz que ilumina todo ser humano.
A surpresa que tomou conta do mundo inteiro com a renúncia do Papa Ratzinger começa a mostrar alguns de seus ricos desdobramentos. Definido sempre como um Papa conservador, que se colocava nas antípodas de toda a renovação que o Concílio pretendeu trazer para a Igreja e para o mundo, Bento XVI mostra agora sua profunda sintonia com esse espírito conciliar que é a referência por excelência à qual a Igreja deve-se voltar, a fim de encontrar seu caminho em meio ao turbulento século XXI. Surpreendendo a todos, até mesmo seus adversários, Bento XVI mostra, às vésperas de deixar seu Pontificado, que a novidade do Espírito é sempre capaz de surpreender e trazer ar fresco até mesmo ali onde a atmosfera parece mais sufocante e opressora. Que o Concílio seja, então, a agenda por excelência da Igreja, é o que se espera daquele que vai suceder a Bento XVI.
*Maria Clara Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio