A não-intervenção nos assuntos internos de um país figura entre os mais robustos pilares da carta da Organização das Nações Unidas (ONU). A eventual desobediência ao princípio justifica-se, apenas, quando há graves atentados aos direitos humanos, entre os quais o extermínio de dissidentes políticos, massacre de grupos étnicos ou defesa armada contra ataques externos. Mesmo antes das disciplinas do Direito Internacional, o respeito à autodeterminação dos povos e à não-intervenção se inscreveram como pedras angulares do constitucionalismo brasileiro.
Em todas as ocasiões em que houve necessidade de reconstitucionalizar o país, sobretudo em 1946 e 1988, o legislador constituinte desarmou o Brasil das tentações de intrometer-se nas questões internas de outros países. O princípio vigorou, inclusive, nas constituições outorgadas ou alteradas sob o guante de regimes ditatoriais.
A Constituição de 1988 assegura que “a República Federativa do Brasil rege-se, nas suas relações internacionais”, pelos princípios (…) da “autodeterminação dos povos” e da “não-intervenção” (art. 4ª, incisos III e IV). Não intervém e, pela mesma razão, não deveria admitir intervenção, seja qual for o meio utilizado. O problema é que a disposição constitucional, em várias hipóteses, se configura como estampa decorativa, colada à Carta como ilustração inútil.
Exemplifica bem a anormalidade a reunião do embaixador de Cuba, Carlos Zamora Rodríguez, com militantes petistas e comunistas para exibir um CD. No gadjet eletrônico havia denúncias ultrajantes e falsas contra a blogueira cubana Yoani Sánchez, então em visita ao Brasil (vide artigo do sociólogo Demétrio Magnoli no Estado de S. Paulo, em 28 de fevereiro de 2013). Ela, como todos sabemos, há mais de 20 anos noticia ao mundo via internet as duras condições de sobrevivência do povo na ditadura castrista. Não houve censura alguma aos que estiveram no encontro realizado na representação diplomática — participantes de um ato de intervenção ilegal em assuntos internos do país.
Entre os presentes ao episódio aviltante se encontrava Ricardo Poppi, auxiliar do ministro Gilberto Carvalho (chefe da Casa Civil da Presidência da República), fato confirmado pela própria Secretaria Geral da Presidência. Não foi intimado sequer a pedir desculpas pela cumplicidade com o desapreço do embaixador ao dogma internacional da não-intervenção. Tampouco, o presidente Lula, perdão, a presidente Dilma Roussef exigiu explicações do embaixador e, muito menos, solicitou ao governo de Havana retirá-lo do país.
Todavia, a inércia do regime petista ante a gravidade do caso não causa surpresa nenhuma. Durante o governo Lula da Silva, dois pugilistas cubanos, membros da delegação enviada por Fidel aos Jogos Pan-Americanos de 2007, fugiram ao confinamento que lhes fora imposto para permanecer no Brasil. Eram dissidentes do regime truculento instalado na ilha caribenha há mais de 54 anos. Tinham o direito de requerer asilo político. Mas foram presos e, a seguir, extraditados para o consulado tirânico dos irmãos Castro. Violação indefensável do Tratado Interamericano de Direitos Humanos, explique-se.
A deportação foi decretada para atender a pedido de Fidel. Mas o então ministro da Justiça, Tarso Genro, informou que os dois atletas teriam ”praticamente implorado” para voltar a Cuba. Meses depois, a verdade triunfou. Um dos pugilistas, Guilherme Ringondeaux, escapou da feroz vigilância da polícia política a soldo czar cubano. Em um barco precário navegou 200 quilômetros e, enfim, encontrou a liberdade. Derrubou a versão de Genro. Presume-se, pois, que a obsessão ideológica ainda expõe o país a submeter-se às diatribes de Fidel e de seus representantes. É o que sugere a ousadia do embaixador Zamora Rodríguez.
Josemar Dantas é editor do suplemento Direito & Justiça, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros