Uma das últimas novidades da cardiologia em caso de estenose da valva aórtica no idoso: em vez de cirurgia, usa-se o cateterismo para trocar a válvula obstruída por uma prótese de longa duração. Não é preciso mais abrir o peito do paciente, não há mais aquele sofrimento pós-operatório. Muito indicado para os velhinhos, o procedimento é possível em hospitais de ponta no Brasil. Uma grande dificuldade: é muito caro.
Outra novidade da medicina: um tipo revolucionário de stent, mola usada para desobstruir artérias do coração, já está sendo testado no Brasil com sucesso. Ao contrário dos disponíveis no mercado, feitos de aço inoxidável, este é produzido com ácido polilático, material absorvido pelo organismo. Em vez de permanecer no corpo para sempre, como os metálicos, desaparece em até dois anos.
Uma vantagem: não é considerado pelo corpo um agente estranho, o que reduz o risco de alergias e, a longo prazo, de provocar fibrose e de induzir à formação de novos coágulos – fenômenos que podem levar novamente a um bloqueio do fluxo sanguíneo.
Outra vantagem: após o desaparecimento do stent, o vaso sanguíneo volta ao funcionamento normal, com sua capacidade natural de se contrair ou de relaxar, algo impossível no caso das próteses de metal. Mas, é oportuno lembrar, também é muito caro.
O mercado oferece também o coração mecânico. Troca-se o órgão doente por uma pequena máquina que faz circular o sangue. Um coração que suporta todas as tempestades da vida. Dependendo do paciente e de sua doença, eis aí o milagre do tratamento. Claro, é muito caro.
E estão também disponíveis nos melhores hospitais do País as cirurgias por computadores. Mãos mecânicas são capazes de deslizar pelo corpo humano e atingir seu objetivo sem nenhum prejuízo de outras partes, com incrível cuidado e precisão. Um espetáculo, que custa muito caro.
Para ampliar a longevidade dos seres humanos, a indústria farmacêutica investe maciçamente em novas pesquisas e obtém drogas cada vez mais poderosas contra vários tipos de doenças. Hoje, o controle é bem mais eficaz pelo uso de medicação contínua para males como cardiopatias, hipertensão, colesterol, os tipos de diabetes, etc.
Como são gastos milhares de dólares em cada uma dessas pesquisas, a indústria farmacêutica precisa recuperar o investimento. E as novas e melhores drogas chegam ao mercado custando muito, muito caro.
E de tecnologia em tecnologia, com custos de caro a caríssimos, chegamos ao grande desafio dos médicos nos dias de hoje: como fazer chegar ao paciente todos os recursos à disposição da Humanidade num país carente como o nosso? Mesmo sabendo que há formas para ampliar a longevidade, temos de nos limitar a recursos já ultrapassados.
Todos os novos produtos da medicina estão na vitrine, é possível alimentar por eles o desejo de consumo, mas ficará nisso, no sonho e na contemplação. São poucos os brasileiros em condições de investir por enquanto num cateter (e se livrar da cirurgia cardíaca) ou em um stent absorvível. Quanto a drogas, a maioria deverá se limitar aos remédios da farmácia popular, pouco eficazes se comparados aos novos produtos.
Precisamos fazer, a partir disso, uma reflexão sobre uma tecnologia em constante evolução e cada vez mais inacessível ao nosso povo. A Associação Médica Brasileira informa que, dos quase 200 milhões de brasileiros, cerca de 150 milhões dependem exclusivamente do sistema público de saúde, numa fila interminável à espera de consultas, exames e cirurgias.
A AMB fez as contas do subfinanciamento da saúde pública brasileira, hoje de cerca de R$ 2 por habitante/dia. O Brasil investe menos em saúde (porcentual do PIB) do que a média dos países africanos e do que outros países da América do Sul. E quando se inventa alguma coisa para a saúde, como o imposto do cheque, o dinheiro é desviado para outras áreas.
Para que se tenha uma ideia do drama, só na cidade de São Paulo havia, até o último dia do ano passado, 800.224 registros na fila por atendimento na rede municipal de saúde em todas as especialidades. O tempo de espera é de oito meses.
Pior: a maioria dos planos de saúde não paga cirurgias mais complexas. Concorda, quando muito, com procedimentos convencionais, às vezes pouco eficazes, em hospitais equipados precariamente. Ademais, quem pode pagar por um coração mecânico nem precisa de plano de saúde.
Mas não estamos num sambódromo para desfilar queixas ou unir num mesmo samba-enredo o luxo e a miséria da medicina. Estamos na ante-sala brasileira para curar nossos doentes, seja com o material de última geração ou com o surrado almoxarifado público e de planos ausentes na hora em que o paciente necessita.
Donde se conclui que, no Brasil, o médico precisa também navegar com um pé em cada canoa.
(*) Américo Tângari Junior é especialista em cardiologia pela Sociedade Brasileira de Cardiologia e Associação Médica Brasileira. Integra a equipe de Cardiologia no Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo